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Do "aquilo roxo" de Collor às "bolas" de Guedes, a reafirmação do machismo

Leonardo Sakamoto

20/03/2019 14h53

"Nenhum presidente jamais teve colhões para cortar os gastos públicos. O presidente Bolsonaro é o único que tem colhões para cortar o gasto público."

A palestra que o ministro Paulo Guedes deu na Câmara de Comércio dos Estados Unidos serviu para mitigar o impacto negativo de declarações da ala ideológica do governo Bolsonaro, junto ao mercado, durante a visita oficial aos EUA. Mas também para mostrar que nós, homens, precisamos caminhar muito para abandonar o machismo na linguagem.

No original, ele usou "balls", melhor traduzido para "colhões" em português.

Nunca imaginei que a capacidade de solução de problemas orçamentários e de gestão estivesse diretamente relacionada à presença de testículos. Imagino que nem as tantas mulheres que assumem cargos públicos e são tão gabaritadas em enfrentar desafios administrativos quanto os homens. Ou mais.

Em um mundo em que muitos "homens de bem" ainda acreditam que a presença de ovários credencia o ser humano a trabalhar apenas com a economia do lar, excluindo mulheres das discussões da vida pública, a declaração do ministro foi completamente desnecessária. Ele poderia ter dito simplesmente que o presidente teve coragem e não relacionar a um gênero.

Alguns vão dizer que isso é chatice do politicamente correto – o que é uma bobagem. Desde o longínquo abril de 1991, momento em que o então presidente Fernando Collor de Mello disse que "havia nascido com aquilo roxo" para afirmar que tinha força e coragem, evoluímos um pouco como sociedade graças à pressão, à denúncia e à insistência das mulheres organizadas. Com isso, nós, homens, começamos (ainda que lentamente) a perceber que nossas palavras podem ser usadas para excluir e justificar outras formas de exclusão.

Tendo sido parte de nossa formação e sendo componente de nosso imaginário, o machismo está presente nas relações sociais e se manifesta em declarações nas quais, consciente ou inconscientemente, reafirmamos que tudo aquilo que é forte, bom, corajoso, inteligente está relacionado a um gênero. A linguagem, organizadora de nosso universo simbólico, é a base para todo o resto.

Por isso, não importa o quão entendiante que isso pareça. Espera-se de líderes que tenham comportamento condizente com a referência que são para a sociedade. Ainda mais o ministro da Economia, visto como um dos fiadores do governo Bolsonaro

Claro que Guedes não foi o primeiro, nem será o último a dar declarações excludentes como essa. Ao longo dos anos, critiquei vários políticos de diferentes posições no espectro ideológico por esse mesmo motivo, neste blog e em outros espaços.

Em 08 de março de 2017, em uma cerimônia do Dia Internacional da Mulher, o então presidente Michel Temer afirmou que a grande participação da mulher na economia era através da administração do lar. "Na economia, também, a mulher tem uma grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes, por exemplo, de preços em supermercados mais do que a mulher. Ninguém é capaz melhor de identificar eventuais flutuações econômicas do que a mulher, pelo orçamento doméstico maior ou menor."

Em um dos grampos que a Operação Lava Jato produziu contra o ex-presidente Lula, em 04 março de 2016, ele disse que esperava uma atuação mais contundente da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em defesa da legalidade. "Se homem não tem saco, quem sabe uma mulher corajosa possa fazer o que os homens não fizeram." Novamente, um político homem considerando coragem como um atributo naturalmente masculino.

Durante a última campanha eleitoral, Ciro Gomes protagonizou algumas polêmicas, por exemplo, quando disse que o ex-deputado Eduardo Cunha teria que ser "muito mais homem" que ele para derrubá-lo se fosse ele o presidente e não Dilma Rousseff. Considerando que a queda era simbólica e não física, não fazia diferença o porte e o gênero dos envolvidos.

E nada supera o então deputado federal Jair Bolsonaro que, nas dependências do Congresso Nacional e, depois, fora dele, disse que não estupraria a deputada federal Maria do Rosário porque ela não merecia. Isso, claro, dispensa qualquer comentário.

Nós, homens, temos a responsabilidade de educarmos uns aos outros, desconstruindo nossa formação machista, explicando o que está errado, impondo limites ao comportamento dos outros quando esses foram violentos, denunciando se necessário for. Não é censura, pelo contrário. Esses são atos para ajudar a garantir que as mulheres possam desfrutar da mesmo liberdade que nós temos – liberdade que nossos atos e palavras sistematicamente negam a elas. Mesmo – e principalmente – quando não percebemos isso.

Nós homens precisamos entender que esses tipos de discurso não cabem mais no mundo em que estamos. Na verdade, nunca couberam, mas somos pródigos em calar aquilo que mostra que estamos errados. Precisamos qualificar o debate com os outros homens. Isso não significa tornar o dia a dia chato e moralista, mas atuar para que percebam, desde pequenos, a complexidade do mundo em que vivem e a construir um novo sentido para as coisas – inclusive na linguagem.

Por fim, a vida pública é um terreno ainda proibido para a maioria das mulheres, obrigadas a habitar a vida privada. Tivemos uma mulher na Presidência da República e duas na presidência do Supremo Tribunal Federal. Simbolicamente relevante, estruturalmente insuficiente, não serve para justificar nenhuma mudança. São poucas as governadoras, prefeitas, senadoras, deputadas, vereadoras. Mas também CEOs, executivas, gerentes, diretoras de redação, síndicas de condomínios.

Falta criar condições não apenas para que cheguem lá mas, chegando, sejam tratadas com o mesmo respeito que os homens. Elas continuam ganhando menos que nós, homens, mesmo exercendo as mesmas funções. Diante de constatações como essas, colocamos a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe e de segunda classe. Atentarmos para as palavras que usamos para definir o mundo é um dos primeiros movimentos para a quebra dessa inércia.

Caso contrário, continuaremos a presenciar casos assim se repetirem. Em 08 de março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro, durante uma cerimônia do Dia Internacional da Mulher, fez troça com o fato de seu gabinete contar com 20 homens e apenas duas mulheres, dizendo que cada uma delas "equivale a dez homens".

As "bolas" de Guedes não são apenas deselegância, mas machismo. Declarações assim não deveriam acontecer – mesmo nos Estados Unidos sob Trump e no Brasil sob Bolsonaro.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto