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Governo insiste que reforma não prejudicará os pobres, apesar de prejudicar

Leonardo Sakamoto

11/04/2019 16h53

Bolsonaro entrega proposta da Reforma da Previdência ao Congresso. Foto:Reprodução

Cada vez que um representante do governo Bolsonaro diz que a Reforma da Previdência não vai prejudicar os pobres, um filhote de panda morre de desgosto na China. Faz parte do jogo democrático o time de Bolsonaro buscar aprovar seu pacote de alterações em aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais. Mas fazer isso tentando evitar que a população entenda os impactos negativos é propaganda enganosa.

É possível reconhecer que a proposta traz instrumentos que combatem a desigualdade, como uma alíquota progressiva que fará com que os que ganham mais contribuam com mais, tanto no setor privado quanto no público. Seria infantilidade travar esse debate em termos maniqueístas de que tudo é bom ou nada presta, mas é exatamente isso que o governo faz ao apresentar sua releitura colorida da realidade. É como jogar purpurina em cima da titica. A titica não se torna um luxo, apenas uma titica que brilha.

Em entrevista ao Congresso em Foco sobre a Reforma, nesta quinta (11), o secretário da Previdência, Leonardo Rolim, afirmou que "para a população mais pobre, não vai mudar praticamente nada". Vamos entender apenas alguns pontos do que ele chama de "praticamente nada".

– O governo propôs que o tempo mínimo de contribuição passe de 15 a 20 anos, ou seja, de 180 para 240 meses. Não seria um grande problema se o país não contasse com altas taxas de informalidade. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), considerando-se a aposentadoria por idade, 50% das mulheres que acessaram essa forma de benefício conseguiram comprovar apenas 16 anos de contribuição. Do total de mulheres ocupadas, quase metade (47%) não possuía registro em carteira, dificultando a contribuição previdenciária.

– Pela proposta do governo, caso a pessoa se aposente por idade, tendo contribuído 20 anos, receberá um valor de 60% da média salarial e não mais 90%, como é hoje para quem perfaz duas décadas.

– A pensão paga a viúvas e órfãos de aposentados passaria a ser de 60% do valor do benefício, acrescida de 10% para cada dependente adicional até 100% (parece haver um fetiche inexplicável com os 60%). E, pior: abre-se a porteira para receber pensões de menos de um salário mínimo. Hoje, o valor é integral.

– O governo propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade (menos de R$ 249,50 de renda familiar mensal per capita) possam receber o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. Vale lembrar que é mais fácil conseguir um bico para complementar a renda aos 60 aos 65 do que dos 65 aos 69 – sem contar que a demanda por recursos para custos de saúde e emergências aumenta exponencialmente nessa idade. Se o objetivo do governo é ser solidário como diz, passe a pagar um adiantamento menor aos 60 e o salário mínimo aos 65.

– O texto da reforma prejudica duas categorias de trabalhadores do campo. Ela demanda de pequenos produtores, pescadores, extrativistas uma contribuição anual mínima de R$ 600,00 por família durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. A proposta ignora que eles, não raro, terminam o ano sem renda líquida, por fatores climáticos ou de preço no mercado, dependendo do Bolsa Família. E também há os assalariados rurais, que terão que contribuir por 20 anos.  Vale ler esse número sob a luz da taxa de informalidade no campo, que ultrapassa os 55%.

A população espera debates abertos e francos de seu governo sobre a Previdência, para explicar o tamanho do ajuste fiscal, apresentar os cálculos detalhados disso, os dados sobre a projeção do envelhecimento da sociedade e analisar todas as fontes possíveis de financiamento das aposentadorias e da seguridade social.

E não declarações que tentam fazer brilhar aquilo que, claramente, não nasceu com esse objetivo.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto