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Bolsonaro quer dar a “cidadão de bem” poder de policial, juiz e carrasco

Leonardo Sakamoto

29/04/2019 15h52

Foto: José Cruz/Agência Brasil

O presidente Jair Bolsonaro anunciou que irá enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional prevendo que proprietários rurais não sejam punidos ao defender à bala suas propriedades de ocupações. A declaração foi dada, nesta segunda (29), na Agrishow, uma das maiores feiras de tecnologia agropecuária do mundo, realizada anualmente em Ribeirão Preto (SP).

"É um projeto para fazer com que, ao defender sua propriedade privada ou sua vida, o cidadão de bem entre no excludente de licitude, ou seja, ele responde [um processo], mas não tem punição. É a forma que temos para quem do outro lado, que não teme em desrespeitar a lei, temam vocês, temam o cidadão de bem, e não o contrário", disse.

Há problemas na declaração do presidente. A não punição em caso de um ataque à vida de um proprietário rural ou urbano, sua família e empregados já configura legítima defesa e está prevista em lei. Traduzindo: se o dono perceber que sua vida está ameaçada, será inocentado se usar da força para se defender. Pois seria a vida dele ou de seus familiares ao invés da vida da outra pessoa. Claro, respeitado a proporcionalidade desse uso da força, limitada ao suficiente para cessar a agressão.

Outra coisa: a lei já prevê que invasão ou ocupação de uma propriedade possa ser impedida com uma reação à altura. Ou seja, em casos em que não há atentado para a vida, não se pode atentar contra a vida. 

"O Estado permite ao indivíduo reagir, em casos excepcionais, quando ele não está lá para defendê-lo. Mas a reação deve seguir parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade e seja o suficiente apenas para cessar a agressão", explica Alamiro Velludo Salvador Netto, advogado criminalista e professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "Contudo, permitir que alguém reaja de forma excessiva é transferir poder do Estado ao cidadão não apenas para se proteger, mas também julgar e punir."

"Não existe legítima defesa da propriedade. Hoje, pode-se tomar medidas para não entrar na propriedade, mas sem cometer excesso", reforça o advogado criminalista Alexandre Martins, que atua na defesa de movimentos sociais.

Ele dá como exemplo o caso do segurança do supermercado Extra, que matou o jovem negro Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, em fevereiro deste ano, no Rio de Janeiro. O segurança poderia ter optado por deter Pedro de outra forma, ao invés de dar um mata-leão e jogado todo seu peso sobre ele a ponto de sufocá-lo.

Bolsonaro desconsiderou a questão do excesso e deixou em aberto as reações possíveis vinda de um "cidadão de bem" como sendo legais. Nem no pacote legislativo contra o crime organizado e a corrupção, apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, há essa previsão. Nele, o "excesso doloso" pode ser justificável se causado por "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". O que, lembre-se, vem sendo criticado duramente por juristas e especialistas em segurança por facilitar a letalidade de agentes públicos e sua impunidade.

Hoje, em caso de ocupação, a polícia é chamada para executar um flagrante. Se ela já estiver consolidada, a Justiça deve decidir a reintegração de posse diante do crime de esbulho possessório (tirar a posse de alguém sobre alguma coisa).

O presidente Bolsonaro disse na Agrishow que "a propriedade é sagrada e ponto final". Do ponto de vista da Constituição Federal, que ele jurou defender ao tomar posse, a declaração está errada. A propriedade é um direito, previsto inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas não é absoluta, depende de cumprir sua função social. E o direito à vida relativiza sim o direito à propriedade, pois o bem tutelado é mais importante. Vale considerar, ademais, que nem a propriedade é subtraída em ocupações e sim a posse – e isso é reversível por decisão legal. A morte, não.

Por fim, uma coisa é a invasão de domicílio, outra é a ocupação de um imóvel abandonado que não é residência dos proprietários. São coisas diferentes não só do ponto de vista legal, mas também simbólico.

A aprovação de uma medida como essa é difícil, mesmo considerando um Congresso Nacional conservador e poderia esbarrar no Supremo Tribunal Federal. Mas o problema é que o cidadão comum, influenciado pela declaração presidencial, pode acreditar que já passou a ser permitido. E aí reside o diabo.

Grilagem de terras

As propriedades improdutivas ocupadas por movimentos sociais com o objetivo de pressionar pela reforma agrária não são páreo para o total de áreas, historicamente, griladas por grandes produtores no país. Terras que pertencem ao patrimônio público e que são usadas para a produção animal ou agrícola e a extração vegetal e mineral. Há municípios da Amazônia Legal em que, para contemplar todos os títulos falsos de terra presentes em cartórios em sua área, teriam que ser três, quatro vezes maiores.

No Brasil, protestos contra pessoas ou empresas que grilam terras ou ocupam territórios indígenas e quilombolas são contidos pela forças públicas enquanto tentativas de retirá-los de lá são negadas, não raro, pela Justiça, mesmo em casos de evidente grilagem. Isso sem contar que os políticos que defendem a alteração da lei para considerar "terrorismo" a ocupação de imóveis rurais e urbanos por sem-terras e sem-tetos são os mesmos que comemoram a aprovação de anistias para grandes invasores de terras. Como a medida provisória transformada na lei 13.465/2017 pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer que estabelece novas regras para a regularização fundiária urbana e rural e trata de grilagem a partir de áreas da União.

Através dela, tornou-se possível regularizar o roubo de terras públicas de até 2,5 mil hectares, pagando apenas uma pequena parte do seu valor real. Cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) haviam apontado que essa "regularização" significaria perda de cerca de R$ 20 bilhões somente na Amazônia. O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5771, pedindo ao Supremo Tribunal Federal que suspenda a lei. De acordo com a ação, que está em trâmite, ela elevará o número de mortes em razão de conflitos fundiários. De acordo com Janot, a medida "autoriza transferência em massa de bens públicos para pessoas de média e alta renda, visando a satisfação de interesses particulares, em claro prejuízo à população mais necessitada".

Parte da bancada ruralista no Congresso Nacional, além de ampliar a anistia para grilagem, também deseja mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" as regras de licenciamento para a implantação de grandes empreendimentos, mudar mais regras para permitir o uso de agrotóxicos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo – isso sem contar o perdão de mais de R$ 10 bilhões em dívidas para a Previdência e Seguridade Social rural. A redução da presença do Estado em áreas de expansão agropecuária e extrativista significa aumento no número de mortes e desastres sociais e ambientais.

Enquanto isso, o Estado desmonta a estrutura de fiscalização ambiental e fundiária. Para não causar problemas para aqueles que são os maiores e verdadeiros invasores de terra do país.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto