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Congresso e Presidência atestam machismo com anistia, dizem especialistas

Leonardo Sakamoto

21/05/2019 20h23

Homens brancos entregam proposta da Reforma da Previdência a uma maioria de homens brancos. Foto: Reprodução

"O ambiente político no Brasil é de extrema hostilidade às mulheres. Ocupamos a vergonhosa 132ª posição no ranking de participação feminina nos parlamentos, atrás de países como Jordânia (131º), Líbia (128º), Turquia (119º) e até Arábia Saudita (105º). A aplicação mínima de recursos do Fundo Partidário para que esse ambiente se mostrasse minimamente convidativo a filiadas e candidatas era um passo, dos mais tímidos, para enviar a mensagem de que os partidos políticos são corresponsáveis por esse cenário e, portanto, por mudá-lo."

A avaliação é de Roberta Gresta, doutora em Direito Político, professora da PUC Minas e assessora do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais. Ela criticou, ao blog, a anistia aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada por Jair Bolsonaro que perdoou a multa aos partidos que descumpriram a obrigação de aplicar, no mínimo, 5% do Fundo na promoção da participação das mulheres.

"A anistia que agora foi sancionada envia outras mensagens: a de que os que cumpriram a lei foram tolos de levá-la a sério; a de que os que as descumpriram são os espertos premiados. São mensagens que referendam o machismo estrutural como norma social, mais eficaz para regular comportamentos que a própria lei", afirma Gresta.

A posição é corroborada por Fernando Neisser, doutor em Direito pela USP, advogado especialista em direito eleitoral e um dos coordenadores da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Ele afirma que a lei, enquanto tinha efeito, contribuiu para alterar esse cenário. "A participação das mulheres na Câmara dos Deputados saltou de, aproximadamente, 10% para 15% na última eleição. Ainda que tímido, o crescimento representa um avanço."

"Como temos eleições a cada quatro anos, o parlamentar mostra-se preocupado com o tema [participação das mulheres na política] antes das eleições e, obtida a cadeira, aprova na surdina uma medida que efetivamente anula aquela conquista", afirma Neisser.

Seguem as perguntas feitas a ambos os especialistas:

Bolsonaro sancionou lei aprovada pelo Congresso Nacional que anistia os partidos que não aplicaram o mínimo de 5% do Fundo Partidário a fim promover a participação de mulheres. Isso pode ser considerado um retrocesso?

Roberta Gresta – Sem dúvida. O ambiente político no Brasil é de extrema hostilidade às mulheres. Ocupamos a vergonhosa 132ª posição no ranking de participação feminina nos parlamentos, atrás de países como Jordânia (131º), Líbia (128º), Turquia (119º) e até Arábia Saudita (105º), com base no levantamento atualizado da UPI [União Parlamentar Internacional]. Empatamos com o Paraguai na última posição da América do Sul.

A aplicação mínima de recursos do Fundo Partidário para que esse ambiente se mostrasse minimamente convidativo a filiadas e candidatas era um passo, dos mais tímidos, para enviar a mensagem de que os partidos políticos são corresponsáveis por esse cenário e, portanto, por mudá-lo.

A anistia que agora foi sancionada envia outras mensagens: a de que jamais se esperava real envolvimento dos partidos em favor da igualdade de gênero; a de que os que cumpriram a lei foram tolos de levá-la a sério; a de que os que as descumpriram são os espertos premiados. São mensagens que referendam o machismo estrutural como norma social, mais eficaz para regular comportamentos que a própria lei.

Fernando Neisser – O retrocesso é inegável. A exigência legislativa, quase uma migalha, era insuficiente para fazer equilibrar um jogo que carrega séculos de patriarcado por trás da inaceitável diferença na representação de homens e mulheres no parlamento. Ainda assim, optou o governo por premiar os partidos que violaram a lei.

A anistia sancionada passa ao conjunto de atores políticos a ideia de que é possível faturar politicamente com a aprovação de medidas favoráveis a uma maior inclusão das mulheres na política e, posteriormente, revogar tais medidas passado o período eleitoral. Como temos eleições a cada quatro anos, o parlamentar mostra-se preocupado com o tema antes das eleições e, obtida a cadeira, aprova na surdina uma medida que efetivamente anula aquela conquista.

Diante desse quadro, quais consequências essa anistia pode ter para a luta pela equidade de gênero na política?

Neisser – O exemplo é péssimo, pois mostra que mesmo os pequenos avanços podem ser retirados, bastando para isso que a atenção da opinião pública se desvie por um momento. Mais do que isso, é um movimento que caminha no sentido contrário de medidas que vêm sendo tomadas em todo mundo, ampliando paulatinamente a representação feminina na política.

O investimento de recursos – e não podemos esquecer que o Fundo Partidário nada mais é que dinheiro público destinado aos partidos – em programas voltados para incentivar a participação de mulheres na atividade política traz resultados. Exemplo recente pode ser visto no legislativo estadual de Nevada, primeiro estado dos Estados Unidos a ter uma maioria de mulheres no parlamento. Matéria veiculada no Washington Post aponta que este avanço deveu-se, basicamente, à difusão de cursos de formação política e atividades bipartidárias de incentivo à participação que, paulatinamente, venceram resistências nos partidos.

Outro exemplo atual é a Espanha, país que vem evoluindo ao longo dos últimos 40 anos na equiparação do tratamento de homens e mulheres na sociedade. Nas últimas eleições gerais, ocorridas agora em abril, viu-se a participação feminina atingir 47% do parlamento, o maior índice da União Europeia. Sempre fruto de ações deliberadas e direcionadas à obtenção deste fim.

Aliás, não é verdade, ao contrário do que se ouviu nos debates em torno da aprovação desta lei, que as medidas que estavam em vigor não teriam contribuído para alterar o triste cenário brasileiro. Ao contrário, a participação das mulheres na Câmara dos Deputados saltou de aproximadamente 10% para 15% na última eleição. Ainda que tímido, o crescimento representa um avanço. É preciso promover políticas ativas para sair do ciclo vicioso de desigualdade de gênero em que nossas democracias se encontravam e se encontram.

Gresta – A anistia convalida essa pensamento, porque neutraliza uma medida legal, singela, que tenta abrir brechas em um sistema social marcado pelo privilégio do gênero masculino. Silenciando sobre esse privilégio, a nova lei sancionada referenda o discurso pseudoliberal que diz que a mudança na política deve ocorrer "naturalmente", como decorrência de uma evolução da sociedade e, claro, da demonstração pelas mulheres de que "merecem" ocupar espaços.

Esta visão – que na verdade não quer mudança alguma -, tenta varrer para debaixo do tapete décadas de estudos que demonstram que nada há de "natural" na distribuição social dos papéis de gênero. Culturalmente, as mulheres foram relegadas ao ambiente doméstico, enquanto aos homens se assinalou o direito ao espaço público, o privilégio de tomar decisões políticas. Quando feministas contestam essa distribuição de papéis e são por isso tachadas de "radicais", "impacientes" e coisas piores, minha vontade é dizer, como em filmes estadunidenses, "I rest my case".

A ira contra mulheres que questionam a conformação masculina do espaço político é a prova empírica de que ele é assim conformado. A anistia sancionada é uma medida de conservação desse desenho e apenas mostra que os séculos de espera paciente pelo milagre da evolução "natural" dos machistas… bem, somente farão com que as coisas sigam como estão por esses séculos.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto