Governo instiga protestos ao defender polícia para censurar universidade
Leonardo Sakamoto
29/05/2019 11h58
Assembleia organizada pelos estudantes da USP decide pela paralisação no dia 15 de maio. Foto: Reprodução/Facebook
O governo Bolsonaro aderiu à convocatória do protesto dos estudantes e professores nesta quinta (30). Ou, pelo menos, age como se quisesse bombar as ruas.
A Advocacia Geral da União solicitou ao Supremo Tribunal Federal autorização para que sejam realizadas operações policiais em universidades visando coibir "viés ideológico" de professores em ambientes públicos. A informação foi divulgada pela repórter Andréia Sadi, da Globo, em seu blog no G1.
"Professores precisam ter um comportamento imparcial, tem assunto polêmico, é natural que se debata. Agora, o que não pode haver é uso de professor sendo tendencioso. Seja professor de direita ou de esquerda, que não atue como militante, sem carga ideológica", disse o advogado-geral da União, André Mendonça.
Segundo o blog, ele nega que isso viole liberdades e estimule a censura. Diz que professores devem fomentar o debate, mas não podem "militar" no espaço público.
A questão é: quem vai decidir o que é e o que não é um discurso militante? A Justiça? A polícia? O tribunal das redes sociais?
Por sorte o Supremo Tribunal Federal já sinalizou, no ano passado, que não deve aceitar qualquer tentativa de castrar o livre debate no ambiente universitário.
O cerceamento de aulas, debates, atividades e manifestações baixado pela Justiça Eleitoral e pela polícia em dezenas de universidades públicas nos dias que antecederam o segundo turno das eleições presidenciais de outubro do ano passado assustou não apenas pelo que representavam – censura – mas também pelo que apontavam: um novo governo com atores dispostos a reprimir a liberdade acadêmica.
No dia 31 de outubro, a corte referendou uma liminar concedida por Cármen Lúcia, que havia suspendido as decisões da Justiça Eleitoral. No debate, os ministros afirmaram que a universidade é um espaço que não admite censura. "A única força legitimada para invadir as universidades é a das ideias livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia", afirmou a ministra.
Com a decisão, o STF deixou também indicado que medidas nesse sentido bem como leis aprovadas com premissa de cerceamento da liberdade de expressão e de pensamento, como as defendidas pelo movimento Escola sem Partido, não devem ser consideradas constitucionais pela corte.
A pancada que vem sendo dada sistematicamente nas universidades federais pelo governo, cujo corte orçamentário é apenas mais um dos capítulos, não é apenas retrato de um período ultrapolarizado, no qual a democracia é testada cotidianamente. É também um vislumbre do que podemos enfrentar caso as instituições, como o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se manifestaram contra essas ações invasivas, sejam preenchidas pelo obscurantismo e deixem de garantir o respeito aos direitos fundamentais. Não são instituições perfeitas, mas desempenham um papel de frear ímpetos autoritários na República.
Roubo de merenda, escolas sem ligação com a rede de esgoto, universidades quebradas, salários de professores achatados, falta de investimento para formação e treinamento, falta de recursos pedagógicos, falta de transporte escolas e por aí vai, a lista com os principais problemas reais na educação no Brasil é grande e demandaria toda atenção dos governos federal, estaduais, distrital e municipais para tentar resolvê-los.
Mas a julgar pela energia gasta pelo governo, parece que o principal problema é a "doutrinação político-partidária", a "lavagem cerebral gayzista" e a "transformação de alunos em zumbis comunistas". Falta até papel higiênico e giz em muitas escolas, mas o poder público acha que sobram mamadeiras de pirocas e kit gays. Claro que existe doutrinação na educação, à esquerda e à direita, mas ela é algo irrelevante comparado aos outros desafios e deve ser enfrentada sempre com mais debate, nunca com menos.
Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o debate sobre a educação, a pluralidade e o futuro. Gerando uma confusão que, antes de ser efeito colateral, é parte de um projeto para conter os pequenos avanços civilizatórios trazidos pela área desde a Nova República.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.