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Fiscalização resgata "homens-tatu" do trabalho escravo na PB e no RN

Leonardo Sakamoto

09/06/2019 13h41

Grupo móvel de fiscalização resgata trabalhadores que exploravam caulim na PB e no RN. Fotos: AFTs

Doze pessoas foram resgatadas do trabalho análogo ao de escravo em minas de caulim nos municípios de Junco do Seridó, na Paraíba, e Equador, no Rio Grande do Norte, em operação que começou no dia 6 de junho. O grupo móvel de fiscalização responsabilizou beneficiadoras do material pela exploração dos "homens-tatu", como são conhecidos os que atuam na extração artesanal desse mineral na região, atividade que vem deixando mortos e inválidos ao longo de anos. Desde 1995, mais de 53 mil pessoas foram encontradas pelo governo federal em condição de escravidão contemporânea.

O caulim é um mineral branco e quimicamente inerte com um amplo leque de aplicações industriais. Séculos atrás já era usado na fabricação de cerâmicas e porcelanas. Depois foi incorporado à indústria de papel, borracha, plásticos, pesticidas, rações, fertilizantes, produtos farmacêuticos. Também é empregado em refratários, tintas, adesivos, cimento, inseticidas, gesso, detergentes, abrasivos, enchimentos, filtro para produção de cerveja, chinelos e até cosméticos. Ele pode ser obtido de forma mecânica ou manual. 

A segunda maneira é adotada por esses trabalhadores no Seridó: cava-se um poço no solo e, ao fundo, abrem-se galerias. O precário sistema de içamento, com carretel, manivela e corda, transporta pessoas para baixo e o pó branco para cima. Os poços encontrados pela fiscalização contavam com profundidades entre 12,5 e 20 metros – mas, não raro, ultrapassam três vezes isso. Após um improvisado rapel sem equipamentos de segurança, chega-se a uma rede de túneis escavados. Não há vigas de sustentação ou nenhum escoramento. Com picareta e pá, puxam toneladas de minério.

"É muito comum desabar essas galerias. Há pessoas entre os que encontramos que perderam familiares em acidentes com desabamentos nas minas", afirmou ao blog a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que coordenou a operação.

De acordo com ela, os casos configuraram condições degradantes (que submetendo o trabalhador a uma situação abaixo da linha de dignidade, colocam em risco sua saúde, segurança e vida) – um dos elementos que constitui a escravidão contemporânea, conforme o artigo 149 do Código Penal. A ação também contou com a participação do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Publica da União e da Polícia Rodoviária Federal.

Risco de vida

Eles estavam em condições perigosas, com risco de morte e soterramento, trabalhando em um ambiente com pouco ar, sem equipamentos de proteção e sem instalações sanitárias e água potável, segundo a coordenadora. Chegavam a receber R$ 550,00 por mês, ou seja, bem abaixo do salário mínimo e sem registro ou direitos trabalhistas.

A fiscalização considerou as beneficiadoras como as responsáveis pelos trabalhadores, que produziam exclusivamente para elas. "Em nosso entendimento, há sim vínculo empregatício. Pessoas morrendo para a exploração do mineral, fornecendo apenas para uma empresa, que dita as regras. É todo um sistema de cegueira deliberada, que ninguém quer ver", afirma Stacholski. O total dos valores a serem pagos giram em torno de R$ 45 mil. A fiscalização não informou o nome dos empregadores, pois o processo de negociação para pagamento está em curso.

O Ministério Público do Trabalho deve convocar as empresas compradoras dessas beneficiadoras para firmar um termo de ajustamento de conduta de forma a evitar que continuem se valendo de matéria prima produzida nessas condições. Auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho vêm atuando há anos na região para combater a exploração do trabalho nas minas de caulim.

Em 2003, acompanhei uma ação de fiscalização em Equador (RN), descendo por esses poços cavados no chão e registrando os trabalhadores nessas galerias, para uma reportagem. Na ocasião, o precário sistema de içamento se rompeu enquanto eu descia. Desci agarrado a uma corda, que rompeu minhas mãos, deixando-as em carne viva. Por sorte, a câmera tinha modo automático, porque ficou impossível fotografar ou escrever por um bom tempo.

Claro que o pequeno drama pessoal não é nada comparado com a realidade que esses grupos de trabalhadores, compostos por amigos e familiares, enfrentam no dia a dia. Principalmente quando as galerias não suportam o peso e soterram quem está na extremidade da corda. Naquele ano, conversei com Luzia, que trabalhava fazendo faxina quando recebeu a notícia de que seu filho havia sido atingido por um desmoronamento.

Desabamentos

"Mainha, arriou uma barreira em cima do Neno."Admílson, 22 anos, explorava caulim nos arredores de Equador. Durante o serviço, um dos túneis abertos por ele despencou sobre sua cabeça e as das outras pessoas que trabalhavam junto. Vieram pedir os documentos de Neno a Luzia.

– Por que? Vão levar ele para um hospital?
– Não. Seu filho já está com Deus.

Ele foi o único que faleceu, decapitado. Só deixaram a mãe vê-lo bem depois, na hora do velório. "No hospital, arrumaram ele." Luzia contou, com uma tranquilidade triste que, além do filho, o caulim havia lhe roubado o irmão três décadas antes. José também trabalhava nas banquetas e vivia com falta de ar. Um dia, quando o problema tornou-se crônico, foi levado a um hospital e morreu por lá mesmo. Silicose.

A doença atinge quem está exposto constantemente a partículas sólidas muito pequenas – mesma condição que ainda tira a vida de muitos ex-operários do amianto. Quando vão encher um caminhão, os produtores de caulim chegam a ficar cobertos de poeira, mas sem máscaras e instrumentos de proteção. O constante atrito na membrana pulmonar faz com que o organismo reaja, criando uma lesão. A regeneração desse local leva à formação de um tecido mais fibroso e menos elástico, diferenciado do tecido normal pulmonar. Pequenas cicatrizes vão se acumulando ao longo do tempo, o pulmão vai perdendo elasticidade e diminuindo a capacidade pulmonar. Até uma hora em que o sistema entrA em colapso.

"Não mudou nada. O que nós encontramos agora, foi o que você viu lá atrás", me explica a coordenadora da operação deste mês de junho.

Além da diferença salarial, direitos trabalhistas e indenizações por danos morais pleiteados aos trabalhadores, os 12 terão direito a seguro-desemprego conferido aos resgatados da escravidão.

A ação é resultado do rastreamento e do trabalho de inteligência do grupo móvel de fiscalização e percorreu outras cidades de ambos estados. Em outros casos, não houve resgates, mas foram entregues notificações para a regularização de irregularidades.

Não é a primeira vez que auditores, procuradores, policiais e defensores resgatam pessoas em minas de caulim. No mês passado, por exemplo, outros 12 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo na exploração do caulim, em Salgadinho (PB), como noticiou este blog no dia 13 de maio. Eles também estavam em condições degradantes de trabalho. Eram descidos por cordas a profundidades de 40 a 60 metros da superfície, sem equipamentos de proteção individual e sem segurança.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto