Fins justificam meios, dizem. Mas quem escolhe "fins" e "meios" no Brasil?
Leonardo Sakamoto
11/06/2019 18h52
Ao receberem material de interesse público que envolvem agentes do Estado, jornalistas têm o dever de divulgar a informação, resguardando a parte relacionada à vida privada dos envolvidos. O Intercept Brasil não errou ao divulgar os diálogos envolvendo o então juiz Sérgio Moro e membros da força tarefa da Lava Jato. Quem cometeu um ato ilegal foi a pessoa que captou o conteúdo sem autorização.
Da mesma forma, os veículos de comunicação que divulgaram o diálogo entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula, em março de 2016, em que tratavam do envio do termo de posse do ex-presidente como ministro-chefe da Casa Civil através do já icônico "Bessias", também fizeram apenas o seu papel. Quem cometeu a ilegalidade de levantar o sigilo sobre um grampo ilegal – a autorização para interceptação e gravação havia se encerrado duas horas antes da fatídica conversa – foi Sérgio Moro. E, pelos diálogos revelados pelo Intercept, verifica-se que a decisão contou com o apoio da Lava Jato.
A exposição de ambos conteúdos por veículos de comunicação, gostando deles ou não, faz parte da liberdade de imprensa em uma democracia.
Acima de todos, funcionários públicos devem agir de acordo com o que é expressamente autorizado. O que não ocorreu no caso do grampo ilegal. Ele não pode decidir passar por cima da lei e da Constituição porque acredita estar em uma missão – imagine se cada servidor achar que está em uma missão e apertar a tecla "foda-se"? Depois, questionado pelo ministro do STF Teori Zavascki, Moro pediu desculpas no estilo "se alguém se sentiu ofendido, foi mal". Mas, naquele momento, Inês já era defunta e o conteúdo acabou tendo farto uso político.
Não há um consenso se os diálogos divulgados pelo site Intercept Brasil, envolvendo procuradores da operação Lava Jato e o então juiz federal Sérgio Moro, são provas legalmente válidas. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes faz coro com juristas que defendem que informações captadas de forma ilegal podem ser usadas para inocentar condenados. Mas dificilmente seriam aceitas como provas para, eventualmente, punir os envolvidos nos diálogos.
O mesmo Gilmar Mendes, em 18 de março de 2016, suspendeu a posse de Lula como ministro-chefe da Casa Civil dois dias depois que o grampo ilegal entre ele e Dilma vir a público pelas mãos de Sérgio Moro. Ele citou em sua decisão a gravação e afirmou que, apesar da polêmica sobre a legalidade dos grampos, a autenticidade havia sido reconhecida pelos envolvidos. Até agora, Moro e a Lava Jato não apontaram quais falas seriam falsas.
Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, e professor da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, e da Universidade de Warwick, no Reino Unido, tem uma reflexão interessante. Segundo ele, sacrificamos direitos no dia a dia, construindo uma espécie de "totalitarismo a conta-gotas". Ferimos a democracia no nosso cotidiano, aparentemente em nome dela. Mas esses "fins" que "justificam os meios" são construções idealizadas baseadas em modelos restritos de sociedade. A simples tarefa de fazer coincidir os meios com os fins, hoje, já ganha um caráter utópico, dado esse gritante descompasso.
É importantíssima uma operação de combate à corrupção em um país em que a corrupção contamina todos os estratos da vida cotidiana. Mas uma operação assim não pode tudo. Acima dela, está a integridade das instituições em uma democracia. Como os direitos.
Com base nisso, organizei algumas perguntas para reflexão:
1) Concorda que a tortura seja usada como método válido de interrogatório?
( ) Não. Pela lei, as pessoas são inocentes até que se prove o contrário e o Estado não pode agir como criminosos para combater o crime.
( ) Sim. Se for para prevenir problemas futuros, é aceitável. Além do mais, se alguém está sendo torturado pela polícia, algum crime deve ter cometido.
2) Acredita que um jornalista deva ser obrigado a revelar a identidade de uma fonte após decisão judicial?
( ) Não. O direito ao sigilo da fonte é protegido pela Constituição Federal e é um dos pilares de nossa liberdade de imprensa.
( ) Sim. Porque é mais importante punir quem vazou informação ilegal. Além disso, não é função de pessoas honestas questionar decisões judiciais.
3) Considera que, em nome da implantação de uma usina hidrelétrica que vai gerar energia para cidades distantes dali, uma população rural deva ser expulsa sem que ela seja devidamente consultada?
( ) Não. O Brasil é signatário de convenções internacionais que garantem que a população afetada seja ouvida antes do projeto começar.
( ) Sim. A qualidade de vida de milhões que vão receber a energia se sobrepõe à de alguns milhares.
4) Em nome do combate à violência, o poder público pode adotar abordagem diferenciada para quem mora em uma comunidade pobre e quem vive em um bairro rico? Concorda que a polícia pode prender sem provas e entrar em casas sem mandados judiciais e a Justiça pode manter presas pessoas sem condenação e que não são acusadas de crimes violentos?
( ) Não. A política de segurança pública não pode passar por cima de direitos fundamentais sob o risco do Estado se tornar aquilo que quer combater.
( ) Sim. Para garantir a segurança da população, sacrifícios devem ser feitos e não dá para ser santo.
5) Você considera que grampos telefônicos captados de forma ilegal podem ser usados como provas em processos quando são indícios reais de irregularidades?
( ) Não. Resolver o crime é importante, mas mais importante é garantir que as liberdades individuais não sejam rasgadas no meio do caminho a ponto de vivermos em um clima de medo eterno do próprio Estado.
( ) Sim. Em nome de resolver um crime, todos os meios devem ser usados. Em nome de um bem maior, a legalidade e o direito são um detalhe, uma tecnicalidade.
Não me preocupo com as respostas. Mas com a pergunta. A correta não é "Os fins justificam os meios?", mas "Quem determina e escolhe esse 'fins' e quem se estrepa com os 'meios'?"
No Brasil, é sempre o andar de baixo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.