Governo ataca Amazônia internacionalizada, mas chama países para explorá-la
Leonardo Sakamoto
21/06/2019 17h59
"O que eles querem, o pessoal lá de fora, e alguns traidores aqui dentro, é fazer com que a Amazônia seja internacionalizada. Enquanto eu for presidente, pode ter certeza que não será." Ironicamente, enquanto denunciava uma suposta trama contra o país, nesta quinta (20), Jair Bolsonaro disse que vai se reunir com o primeiro-ministro japonês na próxima semana e irá propor de "explorarmos a biodiversidade na região". Não é a primeira vez que faz isso. Em abril, afirmou que ofereceu "abrir para ele [Donald Trump] explorar a região amazônica em parceria".
Naquela época, usou a justificativa terraplanista de que povos indígenas podem se tornar países independentes com a ajuda das Nações Unidas, se nada for feito para impedir. Ou seja, ao mesmo tempo em que o presidente é tigrão com organizações da sociedade civil e movimentos sociais nacionais e estrangeiros e agências das Nações Unidas que atuam nas defesa dos direitos fundamentais no Brasil, ele é gatinho com governos e empresas estrangeiros.
Ao recuperar indiretamente o lema da ditadura do "integrar para não entregar", Bolsonaro não conta – por má fé ou ignorância – que a região já está integrada ao capitalismo global. Ou seja, a Amazônia já foi internacionalizada. E não é de agora. Desde o período militar, ela está conectada aos centros do capitalismo nacional e mundial através de cadeias produtivas que exploram recursos naturais, mão de obra e energia – o que não significou, necessariamente, melhora na qualidade de vida de populações tradicionais, camponeses e trabalhadores rurais.
Há vários termômetros para medir isso, um deles é o fato da Amazônia ser o bioma recordista em libertações de pessoas escravizadas na produção agropecuária e extrativista. Mas, se por um lado, o capital vê poucas fronteiras por lá, a solidariedade internacional encontra muros altos e preconceito.
Um exemplo foi frei Henri des Roziers, advogado de formação e dominicano por vocação, que se tornou um dos maiores defensores das vítimas do trabalho escravo e um dos principais atores na luta pelos direitos dos povos do campo. Descendente de uma nobre família francesa, formado em direito e com um doutorado em Direito Comparado pela Universidade de Cambridge, Henri largou tudo em seu país de origem e escolheu lutar ao lado do povo, incomodando muita gente por décadas. E fez com que a Amazônia fosse um lugar menos injusto para se viver. Foi perseguido, chegando a andar com proteção policial 24 horas por dia. Faleceu em 2017. Se estivesse vivo, estaria muito provavelmente na lista de estrangeiros indesejáveis do presidente.
Bolsonaro incorre em um comportamento comum de governantes que acreditam que o termo "internacionalização" vale apenas para a presença da sociedade civil e organizações internacionais estrangeiras, nunca para multinacionais. Uma visão superficial e enviesada que acredita que o setor empresarial é bonzinho e o terceiro setor é malvado. Mas o que seria deste governo sem teorias da conspiração? Para começar, teria que cobrar a responsabilidade dos impactos causados por seus aliados ruralistas na região sem jogar a culpa apenas no desconhecido, no oculto e no estrangeiro.
É claro que existem organizações não-governamentais picaretas. Até porque ONG é uma categoria que engloba toda pessoa jurídica que não é empresa ou governo – de igrejas, passando por times de futebol, museus até associações civis sem fins lucrativos. Mas, da mesma forma, existem empresas e governos desqualificados. O que leva à pergunta: quando meu próprio governo se omite diante do comportamento irresponsável de setores da iniciativa privada nacionais ou estrangeiras ou é ele mesmo perpetrador de crimes, não posso contar com a ajuda de ninguém?
Uma teoria da conspiração famosa é aquela em que estrangeiros querem destacar a Amazônia do restante do país, ocupando-a com forças militares. Quem curte essa cita, como argumento irrefutável, livros didáticos obscuros com mapas esquisitos ou documentos com planos mirabolantes de tomar a maior floresta tropical do mundo. Mas não respondem uma pergunta básica: para que ter o trabalhão de tomar conta daquela bagunça fundiária, se as riquezas já fluem para fora da Amazônia por caminhões, porões de navio ou linhões de transmissão de energia? Empresas que, aliás, durante muito tempo financiaram políticos nacionalistas que são chegados numa teoria da conspiração.
Variante dessa é a de que devolver terras aos indígenas em regiões de fronteira, demarcando e homologando territórios, pode fomentar a independência desses povos do restante do Brasil. Esse argumento tacanho foi usado largamente sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Para membros do atual governo, solução melhor teria sido manter arrozeiros e outros produtores rurais, muitas vezes ocupantes ilegais das áreas e que adotam uma política de terra arrasada no trato ambiental. Porque estes sim seriam confiáveis e estariam lá para desenvolver o país.
Qual a razão de alguém dar ouvidos a uma teoria dessas eu não sei, mas isso prova que há sempre um chinelo velho para um pé cansado. Os territórios indígenas nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra nesse sentido. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, sentirem-se efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra. Coisa que o país nunca garantiu totalmente a eles e, se depender do atual presidente, vai continuar assim.
Outra teoria conspiratória é a de que as organizações e pessoas contrárias ao desmonte da legislação ambiental por conta das mudanças climáticas e da qualidade de vida desta e das futuras gerações são compradas por governos e entidades estrangeiros ou inocentes úteis a serviço de inimigos externos. Houve até um documento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que circulou, durante o governo do PT, listando organizações nacionais e estrangeiras envolvidas no debate da usina hidrelétrica de Belo Monte, mostrando relações de parceria – o que mostra que loucura não escolhe ideologia.
Tudo isso vai por uma linha de raciocínio que reduz quem não concorda com ela a pessoas sacanas ou ignorantes. Ou seja, quem defende um desenvolvimento sustentável e o direito das populações tradicionais frente ao crescimento econômico sem limites age de má fé (representando interesses estrangeiros para ganho próprio) ou é ingênuo (e não percebe que está sendo usado pelo inimigo). Nada sobre uma terceira opção: pessoas podem discordar da forma como é alcançado o crescimento e que acreditam que o sucesso econômico sem garantir dignidade não nos serve e está fadado ao fracasso.
O Brasil vai alcançar seu ideal de nação não quando for o celeiro do planeta ou quando tiver um assento entre os mais ricos, mas no momento em que seus filhos e filhas tiverem a certeza de que não serão expulsos de suas comunidades para dar lugar a plantações e hidrelétricas. Que não serão escravizados em fazendas de gado e café gerando lucros no altar da competitividade. Que não precisarão cruzar os dedos para que o clima não enlouqueça e um morro deslize sobre sua casa ou seu carro. Que não serão assassinados por serem de outra etnia.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.