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Cientista traz dados e é demitido. Presidente da República mente e "talkey"

Leonardo Sakamoto

02/08/2019 17h02

Foto: Daniel Beltra/Greenpeace

O governo federal vai exonerar o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), responsável pelo monitoramento por satélite do desmatamento na Amazônia. Diante de números parciais que apontavam para um aumento significativo na perda de cobertura florestal, Jair Bolsonaro havia atacado Ricardo Galvão, que não ficou calado com medo de perder o cargo e respondeu à altura. À imprensa, o cientista afirmou que "diante do fato, a maneira como eu me manifestei com relação ao presidente, criou-se um constrangimento que é insustentável. Então eu serei exonerado".

O resultado disso é que, quando o termômetro apontou para uma alta na febre da Amazônia, o comportamento do presidente da República foi atacar e depois trocar o responsável por checar o termômetro – ato final que ficou a cargo do ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes. E não poderia ser diferente por duas razões.

Primeiro, atendendo ao naco anacrônico dos produtores rurais e extrativistas, o governo adotou uma política de "liberou geral" para o campo. E, sem dúvida alguma, o Ministério do Meio Ambiente tem sido um dos mais competentes do governo federal, do ponto de vista da estratégia do bolsonarismo, ajudando a derrubar a efetividade da regulação ambiental.

No final do dia, a discussão é uma grande farsa: o governo e essa parte dos ruralistas sabem que enfraquecer a fiscalização e as punições aos infratores leva a danos irreversíveis ao meio ambiente. O que precisam, porém, é convencer a parcela da população que será atingida pelos impacto negativos (como mudanças climáticas, falta de água, contaminação de rios e lençóis freáticos), mas também compradores e investidores de dentro e fora do país de que tudo isso é intriga de comunistas que usam mamadeiras de piroca.

Segundo, o presidente Bolsonaro não gosta de ser contrariado. Em outra fala sobre o caso em questão, já havia dito que estava acostumado com "hierarquia e disciplina" e cobrou que seus ministros fossem comunicados com antecedência dos dados – como se eles fossem produzidos para o governo e não para a sociedade. "É a mesma coisa que um sargento e um cabo passar para frente uma notícia sem passar pelo capitão, coronel, brigadeiro, não está certo isso daí", disse. Na verdade, não é, pois ele não administra um quartel.

Uma das vantagens de uma democracia frente a uma ditadura é que os governos devem contar com uma burocracia de qualidade, de mentes realmente pensantes, com capacidade e liberdade para mostrar aos políticos que eles podem estar errados. Isso ajuda a encontrar soluções para problemas complexos da sociedade, principalmente se essa discordância for transparente e puder ser feita na forma de debate público. O contrário são tiranos ou um bando de autoritários, sejam capitalistas ou comunistas, decidindo pelo resto da nação.

O presidente deu um sinal desse incômodo, nesta quinta (1), ao reclamar que "a Justiça, lamentavelmente, [está] se metendo em tudo". Tratava da disputa judicial na qual o governo quer parar de instalar radares em estradas federais, o que especialistas em trânsito apontam como um fator que aumentará o número de acidentes. Isso ocorreu no mesmo dia em que, cumprindo sua função no sistema de freios e contrapesos entre os poderes da República, o Supremo Tribunal Federal derrubou a ida da demarcação de territórios indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. E interpelou Bolsonaro a dar explicações sobre sua declaração a respeito do paradeiro do corpo de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, que desapareceu pelas mãos da ditadura em 1974.

Por fim, é impossível tratar da exoneração de Galvão, cientista que conta com o apoio de muitos de seus pares brasileiros e estrangeiros, e não lembrar que há, em tudo isso, uma grande ironia.

O presidente do INPE foi criticado por conta dos dados do sistema Deter – que, desde 2004, produz alertas diários de alteração na cobertura vegetal de áreas maiores que três hectares e são enviados automaticamente ao Ibama. Os dados ficam disponíveis no site da instituição para toda a sociedade e, mensalmente, é divulgado um boletim com a situação do mês anterior. Não serve para totalização de desmate, o que fica a cargo do sistema Prodes, anualmente, mas para indicação de aumento de perda de cobertura florestal. Ou seja, ele trouxe dados científicos e foi atacado, chamado de mentiroso, de tramar com ONGs contra o país, enfim, de um leque de alucinações.

Enquanto isso, o presidente da República mente, distorce e chuta informações em seus discursos. Não apenas dados sobre desmatamento. Apenas nas últimas duas semanas, disse que não existe fome no Brasil, que a tortura pela qual a jornalista Miriam Leitão sofreu era mentira, que o jornalista Glenn Greenwald se casou e adotou crianças para evitar ser deportado, que trabalho escravo é configurado pela pouca espessura de colchões ou pela falta de copos decentes. Sobre o paradeiro do corpo de Fernando Santa Cruz, ele sabe o local e esconde o lugar ou mentiu descaradamente.

O primeiro foi exonerado. O segundo segue, sorridente.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto