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Os Estados Unidos estão sob ataque terrorista de nacionalistas brancos

Leonardo Sakamoto

04/08/2019 17h42

Ataque a tiros em Dayton, Ohio. Foto: John Minchillo/AP

Por Mayra Cotta*, especial para o blog

Os tiroteios nos Estados Unidos se tornaram tão comuns que já há um padrão de resposta que vem se repetindo nos últimos três anos, desde a eleição de Donald Trump.

Os democratas denunciam a evidente escalada da retórica racista, o aumento da participação de homens que abertamente se declaram nacionalistas brancos nestes ataques, e a responsabilidade da National Rifle Association (NRA) por sempre barrar no Congresso qualquer tentativa de regulamentação da venda de armas no país.

Do outro lado do espectro político, a resposta-padrão dos republicanos, muitos deles com campanhas financiadas pela NRA, é a manifestação de solidariedade às vítimas dos ataques e o repúdio ao que eles chamam de "politização dos tiroteios". Dizem, então, que é oportunismo político querer discutir mudanças legislativas no calor da violência. São contra a regulamentação da venda de armas porque, segundo o bordão forjado pela NRA, "armas não matam pessoas; são pessoas que matam pessoas". Também não se manifestam sobre o evidente racismo que motiva os ataques e parecem só lembrar da etnia dos atiradores nas raras vezes em que um destes ataques é perpetrado por um muçulmano.

Nas últimas 24 horas, dois grandes tiroteios mataram pelo menos 29 pessoas nos Estados do Texas e Ohio. O primeiro, que aconteceu na cidade de El Paso, já está sendo tratado como um ato de terrorismo doméstico pelos investigadores federais. sso porque o suspeito pelo atentado teria publicado um manifesto racista e xenófobo antes do ataque. De acordo com a imprensa estadunidense, ele disse aos investigadores da polícia que seu objetivo era atirar no máximo de mexicanos possível. Ainda não há muitos detalhes sobre a motivação do segundo ataque, que aconteceu na cidade de Dayton, e o suspeito foi morto por policiais que compareceram ao local quando o tiroteio começou.

E já podemos ver a repetição dos padrões da resposta novamente. Vários dos pré-candidatos democratas à presidência se manifestaram enfaticamente sobre o racismo motivador dos ataques, inclusive denunciando o presidente Trump como nacionalista branco – como Bernie Sanders, Elizabeth Warren, Pete Buttigieg and Beto O'Rourke. Há agora uma forte pressão para que o Congresso interrompa o recesso de agosto e vote uma legislação mais incisiva sobre o controle da venda de armas. Os republicanos e a mídia de centro-direita evitam as tentativas de responsabilizar a NRA e desviam o foco da retórica racista ao tentar caracterizar o homem que publicou um manifesto nacionalista branco antes de começar a atirar "no máximo de mexicanos possíveis" apenas como alguém com graves problemas de saúde mental. Dessa maneira, abafam as críticas mais sistêmicas, que incluem na conta da violência dos tiroteios o racismo e a xenofobia que viraram a principal plataforma política e eleitoral de Trump, e a atuação pesada da NRA, que prioriza a proteção de seus lucros com venda de armamento em detrimento das vidas perdidas por armas de fogo.

Não há mais espaço para dúvidas sobre o que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos. O país está sob ataque terrorista de nacionalistas brancos. Evidentemente, o presidente Trump carrega uma relevante parte da responsabilidade pelo ponto em que chegamos. Em fevereiro deste ano, El Paso foi a cidade em que aconteceu o seu primeiro comício eleitoral, em que o principal ponto pisado e repisado em seu discurso foi sobre o perigo que os imigrantes da América Central representam para o país.

Há menos de um mês, o canto entoado por seguidores de Trump em um comício na Carolina do Norte foi o "mande elas de volta", em referência às congressistas Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib, que foram alvos do ódio racista e xenófobo do presidente em seu Twitter. O cenário atual, criado pela retórica contra os imigrantes latinos, é tão grave que alguns institutos e ONGs foram acionados no Texas para prestar assistência a vítimas do atentado que estavam com medo de procurar ajuda médica por serem imigrantes em situação irregular no país.

A responsabilização de Trump contudo não pode servir para apagar as raízes profundas do nacionalismo branco nos EUA. Este é o país que, em 1861, começou uma guerra pelo direito de continuar escravizando pessoas negras; que 20 anos depois aprovou uma legislação federal para expulsar todos os imigrantes chineses, que foram responsabilizados pela crise de desemprego da época; que ao perder a mão de obra negra nas plantações do Sul criou um programa federal para trazer mexicanos para trabalharem em condições análogas às de escravo; que apenas em 1965 acabou com o direito dos estados de separarem negros e brancos em escolas e de proibirem o casamento interracial.

Se o atual presidente conseguiu durante sua campanha e seu governo explorar essa longa história estadunidense para manter uma base fiel de apoio, certamente não é ele o responsável por criar o nacionalismo branco. Mas a sua retórica organizou e deu uma identidade coletiva, agora legítima e tolerada publicamente, ao sempre presente racismo americano, que vê em qualquer pessoa não-branca de origem europeia uma ameaça ao país. E por essas razões podemos falar em terrorismo doméstico de nacionalistas brancos. Afinal, boa parte dos tiroteios são perpetrados por homens que querem de fato exterminar as minorias racializadas, homens que declararam guerra a quaisquer grupos que pareçam ameaçar o estabelecimento de uma sociedade de pessoas brancas, que compartilham uma única cultura e religião e o mesmo ódio ao Outro.

Nessa "América" fantasiada pelos nacionalistas brancos e vendida pelo atual presidente, todo mundo tem um emprego porque não há mais imigrantes para roubá-los; todo mundo está seguro porque os criminosos negros e latinos estão presos ou mortos pela polícia; todos conseguem casar com mulheres decentes e devotas, porque os valores cristãos não foram corrompidos pela diversidade. Enfim, uma promessa de América tão fantasiosa quantos as virgens no paraíso, mas que tem motivado muitos a saírem às ruas para exterminar os seus inimigos.

(*) Mayra Cotta é advogada e pesquisadora do Departamento de Política da New School for Social Research em Nova York.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto