Topo

Rolo da CPMF nos lembra que Bolsonaro foi eleito sem um projeto de país

Leonardo Sakamoto

11/09/2019 23h46

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Em seus sonhos, o ministro da Economia deseja a desoneração da parte do INSS que cabe, hoje, aos empresários, jogando a fatura para toda a sociedade através de um imposto. Uma CPMF renascida do inferno caberia como uma luva.

A Constituição Federal deixa claro que o financiamento da seguridade social deve vir de trabalhadores, governo e empregadores. Mas se depender do ministro, o governo, que já não coloca sua parte de forma correta e reclama do tamanho do déficit, terá a companhia dos empresários.

Guedes acredita que gastando menos com a proteção e aposentadoria dos trabalhadores, empresários vão gerar mais empregos. Mas ele faz isso com um imposto que incide pesadamente no consumo. Ou seja, todos pagam.

A ideia vai no mesmo sentido da substituição do sistema de repartição (em que os da ativa contribuem para os aposentados) para o de capitalização (em que cada um faz uma poupança individual ao longo da vida). A previsão da capitalização foi retirada da Reforma da Previdência. Mas o ministro é brasileiro, não desiste nunca. Ainda quer implementar o sistema para os jovens que estão entrando no mercado de trabalho.

Diante da gritaria coletiva contra o malfadado imposto, Bolsonaro pediu a Guedes a cabeça do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra.

"Tentativa de recriar CPMF derruba chefe da Receita. Paulo Guedes exonerou, a pedido, o chefe da Receita Federal por divergências no projeto da reforma tributária. A recriação da CPMF ou aumento da carga tributária estão fora da reforma tributária por determinação do Presidente", tuitou Bolsonaro. Ou seu filho, o vereador Carlos, o que dá no mesmo. E lá se foi o homem do imposto único.

Por ter batido de frente com o presidente outras vezes, ele pagou o pato amarelo. Mas não era o único a defender a volta de um imposto sobre movimentações financeiras. Independentemente das razões, o passa-moleque do presidente da República em Cintra dificulta a vida de Paulo Guedes.

Outra coisa que todo o episódio mostra é a falta que um projeto de país nos faz. Bolsonaro foi eleito empunhando várias bandeiras desconexas e sem um projeto claro – além de nos fazer voltar 40 anos em quatro do ponto de vista comportamental e de costumes. O vazio de organização e de planejamento se reflete na bateção de cabeça de membros de sua administração, o que pode ser visto pelas brigas dele com o próprio Marcos Cintra ao longo do tempo.

Nos primeiros meses, esse contexto tinha o charme tosco de uma Sessão da Tarde, com uma turma do barulho aprontando altas confusões, em um início de mandato. Agora, fica claro a incompetência de gestão, a falta de comando, a precariedade do planejamento, o mau uso de balões de ensaio, a fogueira de vaidades e o desespero do trabalhador – que vê um emprego formal se tornar produto de luxo.

Sua campanha eleitoral apresentou uma antiproposta, prometendo que ia mudar tudo que está aí, talkey? O candidato que se vendeu como antissistema preferiu se mostrar como a pedra sobre a qual seria refundado o Brasil, pondo um fim ao ciclo da Nova República (1985-2018), do que mostrar como faria isso. Questionado sobre o que defendia para a Reforma da Previdência ou para a Reforma Tributária, pedia para Paulo Guedes falar ou mandava ele se calar, de acordo com a conveniência.

Dizer que construiria um Brasil conservador em costumes e liberal na economia é vago. O discurso de que o sistema deve passar por um reset e recomeçar do zero não demonstra apenas deficiência de aprendizagem de História e de finanças públicas combinada com o uso acrítico de WhatsApp, mas é uma auto-sabotagem.

Montar um governo não é apenas chamar jogadores e dizer que o objetivo deles é ganhar o campeonato. Imaginou-se que Bolsonaro gastaria os meses de transição organizando como seu time jogaria, com a posição e a responsabilidade de cada um, alertando para sobreposições, falhas de marcação, caneladas desnecessárias e buracos no campo. E que ele chamaria para si as broncas e a estratégia e garantiria que houvesse uma boa comunicação interna da equipe e que o time falasse aos espectadores apenas quando tivessem consenso sobre algo. Mas ele deve sua posição na tabela, que não está tão mal, ao fanatismo da torcida, à irregularidade dos adversários e uma ajudinha do juiz.

"O desconhecimento meu [de economia], como o dos senhores em muitas áreas, e a aceitação disso é um sinal de humildade. Tenho certeza, sem qualquer demérito, que eu conheço um pouco mais de política que Paulo Guedes, e ele conhece muito mais de economia do que eu", afirmou o presidente em janeiro.

Parte da classe trabalhadora votou nele por desilusão com o sistema. Foi uma aposta. E esse eleitor está perdendo a paciência, pois o emprego cisma em não aparecer na velocidade necessária. E, quando aparece, vem precário ou por conta própria. Isso sem falar que ser pequeno e microempresário no Brasil segue um martírio.

Seria bom que ele entendesse de administração econômica, mas não é disso que está sendo cobrado, mas de ser capaz de organizar os diferentes grupos que fazem parte de sua gestão visando o cumprimento de um programa – seja ele qual for. Ao mesmo tempo, seria importante entender qual sua visão de país para além do banimento do Kit Gay, da Mamadeira de Piroca, do Saci Pererê e, agora com as queimadas, do Curupira.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Rolo da CPMF nos lembra que Bolsonaro foi eleito sem um projeto de país - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto