Governo vai deixar de ser o Robin Hood doido que taxa pobre e protege rico?
Leonardo Sakamoto
13/09/2019 12h44
O ministro Paulo Guedes diz que quer cortar privilégios na cobrança de impostos. Isso é ótimo. Esperemos, contudo, que a definição de "privilégio" adotada pela equipe econômica para a Reforma Tributária seja diferente daquela que foi abraçada para a Reforma da Previdência.
Guedes e seu chefe cansaram de dizer que a proposta de mudança nas aposentadorias iria remover privilégios. Enquanto isso, protegeu militares, que tiveram direito a uma reforma própria para chamar de sua. E diziam que ela atingiria apenas os mais ricos, mas o texto que saiu do Ministério da Economia dificultava a vida de trabalhadores rurais, idosos em situação de miséria, viúvas e órfãos. Se não fosse o Congresso Nacional e a pressão de sindicatos e a sociedade civil, teria sido uma tragédia de proporções épicas.
Mesmo o projeto aprovado dificultou a vida de quem ganha entre um e dois salários mínimos – convenhamos que ganhar menos de dois mangos por mês só é privilegiado para quem vive à base de alucinógenos. Ao mesmo tempo, o governo não se apresentou para debater a proposta da Previdência com a população, apenas com entidades empresariais e investidores.
A Reforma Tributária poderia ser a principal do governo Bolsonaro. Porque além da simplificação de um sistema complexo, que atrapalha o crescimento, enlouquece empresas e gera disputas regionais, temos a chance de reduzir a estúpida desigualdade social que grassa por aqui. Taxando os super-ricos de forma que paguem, ao menos, a mesma proporção de imposto sobre sua renda que a classe média. Buscando formas de aumentar a alíquota cobrada sobre grandes heranças e instituir uma taxação real sobre grandes fortunas.
Fazer uma reforma apenas para simplificar, sem onerar ricos e desonerar o consumo não é reforma, mas ajuste cara de pau.
Por que combater a desigualdade na cobrança de impostos é tão importante? A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e às outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, sendo injusto e violento contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar, em parte, o momento em que vivemos hoje.
O ideal é que os bilionários e milionários que vivem de dividendos pagassem mais, proporcionalmente, que os trabalhadores assalariados. Mas, convenhamos, é mais fácil o tal do camelo passar pelo tal buraco da agulha – na tradução bíblica equivocada – do que isso acontecer por aqui. Então, uma alíquota parecida já estaria de bom tamanho.
Removida durante o governo Fernando Henrique, a taxação de dividendos poderia voltar com algo em torno de 15% a 20%. Não revolveria o problema fiscal, mas nem essa deveria ser a razão para tanto. E sim a busca por mais equilíbrio tributário e justiça social. Entre os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos Estados mais ricos, apenas o Brasil e a gloriosa Estônia não taxam dividendos.
Isso teria que vir junto com a redução do imposto de renda cobrado das empresas, abrindo espaço para o aumento de investimentos. A equipe de Henrique Meirelles, quando ministro da Fazenda, chegou a discutir uma formulação nesse sentido. Mas a ideia acabou espancada e morta pela parte mais rica da opinião pública – que, quando "ameaçada", sabe mostra os dentes e defende o seu privilégio.
O problema é que Bolsonaro acha que os ricos no Brasil já são injustiçados.
"Eu acho que no Brasil você não pode falar em mais ricos, está todo mundo sufocado. Se você aumentar a carga tributária para os mais ricos, como a França fez no governo anterior, o capital foi para a Rússia. O capital vai fugir daqui, a carga tributária é enorme. Quase tudo é progressivo no Brasil", declarou o então candidato Jair Bolsonaro, em entrevista no dia 17 de outubro do ano passado.
Os número do IBGE que apontam a queda contínua na renda média dos trabalhadores mostram, contudo, que quem vem sofrendo são os mais pobres, a classe média, os pequenos empresários. O desemprego cai, mas na base do trabalho informal e precário ou do trabalho por conta própria.
Como já disse aqui, o Brasil é um grande Robin Hood às avessas: o sistema tira dos pobres para garantir aos ricos. Enquanto um sócio ou investidor de uma empresa recebe boa parte de sua renda de forma isenta, um metalúrgico e uma engenheira contratados via CLT são obrigados a bancar alíquotas de até 27,5% por salários que mal pagam um plano de saúde privado ou a escola particular dos filhos. E um camelô ou uma trabalhadora empregada doméstica sem carteira são obrigados a deixar uma boa parte de sua pouca renda em impostos ao adquirir alimentos e roupas e usar transporte público.
E, apesar disso, mesmo após a demissão do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, o governo ainda insiste na ideia de criar um clone da CPMF – o que aumenta, ainda mais, os impostos sobre o consumo.
O governo acerta ao falar de propostas como o fim ou a redução de deduções em saúde e educação, que acabam privilegiando (com exceções, claro) as classes alta e média alta no Imposto de Renda, e de rever a ausência de taxação de dividendos. O próprio presidente vai no sentido correto ao defender a correção do piso de isenção do Imposto de Renda, que está defasado e não acompanhou a inflação. Mas erra ao ignorar a baixa progressividade dos impostos por aqui, que não combate o tal Robin Hood.
A questão, portanto, não é necessariamente aumentar a carga tributária, mas distribui-la melhor. Disso pode sair um país um pouquinho mais justo. Ou um futuro que tem tudo para repetir o passado.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.