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Com campo em guerra, Brasil amplia posse de arma e bota fogo em capim seco

Leonardo Sakamoto

17/09/2019 16h58

Ilustração: Samuel Bono/Repórter Brasil

Jair Bolsonaro sancionou, nesta terça (17), o projeto de lei 3.715/2019 que permite a moradores de áreas rurais circularem com armas de fogo por toda a extensão de suas propriedades. Antes, a posse estava restrita à sede do imóvel.

Para a bancada ruralista no Congresso Nacional, isso é uma forma dos produtores se protegerem. Para entidades que atuam na defesa dos direitos humanos na região de expansão agropecuária da Amazônia, esse tipo de medida facilita as condições para o aumento no número de assassinatos de povos e trabalhadores do campo. E, pior: dando a eles um verniz de legalidade.

José Batista Afonso, advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra, instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Marabá (PA), foi ouvido pelo blog quando Jair Bolsonaro editou um decreto com o mesmo dispositivo da lei aprovada. A ordem presidencial foi revogada, mas a posse de armas em todo o perímetro da fazenda acabou aprovada na forma de lei.

"Na Amazônia, o tamanho das fazendas é imenso. Mas, maior ainda, é o tamanho 'pretendido' dessas propriedades, em que fazendeiros alegam serem donos de áreas que, na verdade, não lhes pertencem. Áreas que são da União ou de outras pessoas", explica. De acordo com ele, ao longo da ocupação da região, grileiros sempre estiveram envolvidos em casos de chacinas e violências contra povos do campo e, agora, poderão alegar que atiraram para se defender dentro do perímetro de uma terra que, na verdade, não é sua.

Os mesmos grileiros que desmatam e põe fogo em terras públicas, para depois loteá-las e vendê-las.

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Para Batista, se já era difícil apurar casos de violência contra trabalhadores e pequenos produtores, agora a investigação dos casos tende a ficar mais complicada. E ele sabe do que está falando, uma vez que defende trabalhadores vítimas de violência na região, palco de massacres e chacinas, como o de Eldorado dos Carajás (1996) e a de Pau D'Arco (2017). Entre outras ações, foi advogado de acusação no caso da morte da irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005, em Anapu.

O Estado brasileiro tem sido incompetente para prevenir e solucionar crimes contra a vida no campo. Vive-se uma situação clara de conflito deflagrado, com a existência de milícias armadas por fazendeiros e grileiros. Isso quando não é, o próprio Estado, sócio de chacinas e massacres.

Considerando os índices de violência, o governo federal deveria atuar para dificultar o alcance das armas de fogo a todos, principalmente aos grupos que já demonstraram pouco apreço à vida humana. Vale lembrar que os registros apontam que os assassinatos e chacinas no campo são de trabalhadores rurais, populações tradicionais, sindicalistas e funcionários públicos – historicamente executados por pistoleiros e policiais a mando do poder econômico.

De acordo com o relatório divulgado, anualmente, pela Comissão Pastoral da Terra, 960.630 pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo, em 2018, frente a 708.520, em 2017 – um aumento de 35,6%.

Mortes no campo não são de hoje, mas há muitos produtores rurais e extrativistas atrasados que estão com sangue nos olhos. Talvez por se sentirem fortalecidos pelas alianças políticas que fizeram, talvez por verem no governo federal um aliado para suas demandas. Querem mudar as regras da demarcação de territórios indígenas e poder explorá-los, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" as regras para a implantação de grandes empreendimentos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo, esquentar terra roubada.

A violência no campo irá diminuir quando o país garantir uma opção de desenvolvimento que inclua o respeito às leis ambientais sem chance para anistias que criem a sensação de impunidade do "desmata aí, depois a gente perdoa". Mas que também passe pela regularização fundiária geral, pela preservação dos direitos das populações tradicionais e dos trabalhadores rurais e por encarar a questão fundiária e a segurança pública como questões de Estado – e não como um grande "cada um por si e a espingarda calibre 12 por todos".

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto