Redação do Enem mostra que nem todos sabem o que significa "democratização"
Leonardo Sakamoto
04/11/2019 19h16
Tão logo o governo federal revelou que o tema da redação do primeiro Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) sob Jair Bolsonaro era a "democratização do acesso ao cinema no Brasil", houve um aumento no número de buscas no Google pela expressão "democratização do cinema no Brasil". Até aí, tudo bem. Contudo, também houve um pico menor para "o que é democratização". Uma parcela das pessoas, portanto, não sabe o que significa tornar algo democrático.
A expectativa natural era de que o termo "democratização" fosse tão introjetado e conhecido por todos que surpreende ter ganhado destaque nas buscas isoladamente. Mas não é bem assim. Apesar de vivermos em uma democracia, não são todos os que compreendem o que isso quer dizer.
De acordo com o cientista político Vitor Marchetti, professor da Universidade Federal do ABC, é possível supor que uma parte significativa dessas buscas tenha sido de jovens interessados no Enem. Ou seja, uma geração que nasceu sob o marco democrático da Constituição de 1988 e não pegou, portanto, o processo de redemocratização do país, vivendo um período de relativa estabilidade institucional, com um número recorde de eleições. Uma geração que passou por um processo crescente de políticas voltadas à inclusão e ao atendimento de demandas sociais
"Quem vivenciou a instabilidade política brasileira sabe que o termo 'democratização' não é tão natural. Talvez não tenhamos naturalizado tanto quanto essa geração, formada por essa lógica, que não tem a dimensão do que seria algo fora da democracia", afirma.
Mas se não temos clareza sobre o significado do que não é democracia, dificilmente teremos clareza dos princípios que devem ser defendidos para que uma democracia se sustente. "Não à toa temos visto ações, declarações e posturas não-democráticas do presidente da República, seus filhos, ministros e assessores próximos que têm sido naturalizadas. Essa naturalização só ocorre porque, do ponto de vista conceitual, não está claro para as pessoas", explica Marchetti.
Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo, tem se debruçado sobre o comportamento político de jovens no Brasil e coordenado pesquisas sobre famílias que ganham entre 2 e 5 salários mínimos, ou seja, a média dos brasileiros. Segundo ela, conceitos como "democracia", "democrático", "democratização" praticamente não aparecem na boca das pessoas nos levantamentos que realizaram.
"Algumas razões: primeiro, quando questionadas, as pessoas falam que democracia é uma coisa abstrata demais, não conseguem ver o concreto do conceito. Os problemas cotidianos são o trabalho, o posto básico de saúde, a criança na escola, a creche. Mas a democracia, para eles, está longe demais. Não a veem como parte do cotidiano, não a veem afetando a vida cotidiana deles, como indivíduos", afirma Solano. "Além disso, quando o termo é citado, ele é sempre muito vinculado ao conceito político-partidário. Portanto, conta com uma percepção que pode ser muito negativa."
Para ela, há uma ausência grande de educação cívica, cidadã e política. "Temos escolas muito focadas em educação produtivista para formar trabalhadores e, ainda assim, trabalhadores medíocres. E isso tem um reflexo muito grande nas entrevistas que conduzimos. Temos visto que a democracia, como valor positivo, vem caindo."
Tanto ela quanto Vitor Marchetti citam os dados do Latinobarômetro, organização não-governamental sediada no Chile que, anualmente, realiza uma pesquisa de opinião pública sobre o estado da democracia em 18 países da América Latina. No levantamento de 2018, o apoio à democracia no Brasil alcançou 34%, empatando com Honduras e ganhando apenas da Guatemala e de El Salvador, com 28% cada. No vizinho Uruguai, o índice é de 61% e na Argentina, 59%. A média é 48%. E amargamos o último lugar quando a questão é a satisfação com a democracia, 9% – enquanto a média regional é de 24%.
"A democracia está atrelada à ideia de crise econômica e política profunda, como se a democracia fosse mais um instrumento do que um valor per se", afirma Esther Solano. "Apesar de termos vivido as últimas décadas em um nível razoável de estabilidade democrática, ainda está muito longe a possibilidade de afirmar que o país consolidou tanto as instituições quanto as percepções e valores democráticos em seus cidadãos e atores políticos", conclui Marchetti.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.