Trabalho escravo bomba desmatamento da Amazônia por bois, madeira e terra
Leonardo Sakamoto
20/11/2019 04h00
Caminhão com toras de madeira derrubadas por grupo de trabalhadores resgatados da escravidão em Rondônia. Foto: AFT
"Parte do desmatamento da Amazônia foi feito com trabalho escravo." A declaração da procuradora Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, remete à lembrança algo fundamental, mas quase sempre esquecido: árvores saudáveis não tombam sozinhas. Muitas vezes tocam o chão por mãos cativas.
A informação ganha especial relevo nesta semana, quando o governo federal divulgou um salto de 29,5% na área desmatada da Amazônia Legal na comparação entre agosto de 2018 e julho de 2019 e o período anterior. Os dados são do sistema Prodes (inventário de perda de floresta feito anualmente), mais preciso que o Deter (sistema que produz alertas diários de alteração na cobertura vegetal) – ambos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
De acordo com Cardoso, foram flagrados trabalhadores escravizados em atividades ligadas ao desmatamento em todos os nove estados da Amazônia Legal, mas em especial no Pará, no Mato Grosso e no Amazonas. "Os resultados das fiscalizações mostram uma evidente e intensa relação entre trabalho escravo e desmatamento, principalmente na pecuária bovina", afirma a procuradora.
Xavier Plassat, cientista político pela Sciences Po, de Paris, frei dominicano e coordenador da área de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra, concorda. Para ele, existe uma conexão intrínseca entre destruição da floresta e trabalho escravo e dá como exemplo o município de São Félix do Xingu, no Pará, um dos campeões em área desmatada de Amazônia. E, ao mesmo tempo, campeão nacional em trabalho escravo – com 1650 libertados em 183 casos registrados desde 1995.
"Seja no desmatamento raso para a abertura de pastos, seja no saque madeireiro, em que o desmate seletivo é orientado pelo altíssimo valor de determinadas árvores, o ponto de partida é quase sempre carregado de ilegalidade. A terra é geralmente grilada ou uma área de proteção invadida e as autorizações de corte e transporte são fraudulentas", afirma Plassat. "Para se sustentar, essa ilegalidade originária requer uma ilegalidade estrutural que garanta visibilidade mínima e rapidez na execução e dificulte a detecção pelo olhar indiscreto do satélite. Isso nunca combina com as exigências de um trabalho em condições minimamente decentes."
Em outras palavras, as vítimas são obrigadas – sob ameaças e violência – a trabalhar rapidamente para cumprir as necessidades do empregador. E como tudo deve ser rápido e discreto, não há instalações adequadas, alimentação e água próprias para o consumo, equipamentos de proteção. "Isso fomenta condições degradantes e jornadas exaustivas, não raro em áreas isoladas, onde o trabalhador, aliciado fora ou não, vive confinado e submisso ao bem querer de um capataz."
Mais de 54 mil pessoas foram resgatadas dessas condições pelo governo brasileiro desde 1995, de acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Imagens de operações do grupo móvel de fiscalização, formado por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, policiais e defensores públicos, entre outros servidores, têm reforçado que trabalho escravo e desmatamento andam de mãos juntas. E matam.
Perdeu o filho e seguiu trabalhando
No início de setembro, uma ação resgatou 17 trabalhadores de condições análogas às de escravo que atuavam na derrubada de mata nativa e carregamento de toras em caminhões, em Pimenta Bueno (RO). O grupo, contudo, estava lá meses antes. A equipe chegou a eles por causa da denúncia da morte de um trabalhador atingido por uma árvore durante o desmatamento. De acordo com a auditora Andrea Donin, coordenadora da operação, os 17 estavam em condições degradantes de trabalho e atuavam sob grave risco para sua segurança e vida.
A mãe e o irmão do trabalhador foram dois dos 17 resgatados na frente de trabalho. Ela – que atuava como cozinheira do grupo – afirmou que precisava do serviço e, por isso, continuou ali mesmo após a morte de seu filho. Como ninguém era registrado como empregados da fazenda, a esposa teve que entrar na Justiça pelo direito a receber pensão pelo INSS.
Outra operação, iniciada no final de agosto, resgatou 12 trabalhadores que atuavam na derrubada de mata nativa e em uma serraria, montada no local para pré-beneficiar a madeira, na ilha de Marajó, no Pará. Os trabalhadores também haviam começado a trabalhar meses antes, como no caso acima, e, portanto, dentro do período monitorado pelo Prodes.
O coordenador da ação, o auditor fiscal do trabalho Homero Tarrago Neto, explicou ao blog que as condições em que as pessoas foram encontradas eram péssimas. Os alojamentos não contavam com condições básicas de higiene, privacidade e conforto e não havia instalações sanitárias ou água potável nas frentes de trabalho ou local para preparo e consumo das refeições. Recipientes destinados ao armazenamento de óleo para motor eram reutilizados para o consumo de água e o pagamento era feito de forma irregular.
Além da abertura de novas áreas para a pecuária e o desmatamento direto, há também escravização de seres humanos em outras atividades de retirada de floresta nativa na Amazônia, por exemplo, na produção de carvão vegetal. De acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, uma operação em Santa Rita do Tocantins, em outubro de 2018, libertou nove trabalhadores de condições análogas às de escravo. Outra, em abril, em Tucuruí (PA), resgatou 11 pessoas. Em ambas, produzia-se carvão.
"Há relação entre o desmatamento, especialmente aquele destinado à abertura de novas pastagens para pecuária, e o trabalho escravo, de acordo com informações constantes no Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho", afirmou ao Alberto Bastos Balazeiro, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, pouco depois de ser empossado em agosto.
"Os municípios paraenses de Altamira e Novo Progresso [onde ocorreu o chamado "Dia do Fogo", com convocações de produtores rurais para a realização de queimadas], na Amazônia Legal, por exemplo, concentram elevado número de resgates de trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea. Não há números exatos da incidência do trabalho escravo no desmatamento, pois o registro é feito pela principal atividade econômica do empregador", afirma.
Críticas ao governo
Desde o início do ano, Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, são acusados de enfraquecer os órgãos e sistemas de controle e monitoramento. Garimpeiros e madeireiros fecharam rodovias para chamar a atenção do presidente diante de tentativas dos órgãos de fiscalização de combaterem o aumento nas queimadas – etapa seguinte ao desmatamento. Foram defendidos por Bolsonaro, enquanto fiscais eram criticados.
Bolsonaro chegou a dizer, em uma de suas lives semanais, que "quem quer atrapalhar o progresso, vai atrapalhar na Ponta da Praia". Ele se referia a servidores públicos que estariam demorando para conceder licenças para um empreendimento na região Sul. Disse que não mandava neles, mas se pudesse, "cortaria a cabeça". "Ponta da Praia" se refere à base da Marinha na Restinga de Marambaia, no Rio, que teria sido usada como centro de interrogatório, tortura e execução durante a ditadura.
No dia 30 de julho, o presidente criticou o combate ao trabalho escravo, tanto o conceito utilizado para definir esse crime quanto a fiscalização. Demonstrando desconhecimento quanto ao tema, ele bateu a emenda 81/2014 da Constituição Federal, que prevê o confisco da propriedade rural ou urbana de quem utilizou trabalho escravo. A emenda é a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate à escravidão contemporânea no país. Ironicamente, o presidente votou a favor dessa emenda em 2004, quando era deputado federal, no primeiro turno de votação.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.