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Witzel vê a favela como tabuleiro em que peões podem ser sacrificados

Leonardo Sakamoto

25/11/2019 21h13

Ágatha Félix, morta aos oito anos por um tiro de um policial militar no Rio

A vida em áreas pobres da segunda maior cidade do país não é uma partida de xadrez na qual o sacrifício de peões é aceitável para ganhar o jogo. Pelo contrário, deveria ser sempre motivo de lamentação por parte das autoridades. Mas não é o caso do governador Wilson Witzel, pelas declarações que deu e as que não deu, nesta segunda (25), no qual ficamos sabendo que a letalidade policial bateu recorde.

"Nossa política de segurança tem mostrado, mês após mês, que estamos no caminho certo. Muitas vidas foram salvas pela atuação das nossas forças de segurança. Sempre acreditei que ao dar autonomia e recursos às polícias, os resultados iam surgir", afirmou em sua conta no Twitter. E concluiu, sem lamentar uma das tantas mortes de inocentes pelas mãos de policiais, quase em tom de ameaça: "É assim que vamos seguir".

Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro mostram que o Estado bateu seu recorde de mortes em confronto com forças de segurança: 1546, apenas nos dez primeiros meses do ano, passando as 1534 registradas em todo o ano de 2018, que era o maior número até então.

De janeiro a outubro de 2019, em relação ao mesmo espaço de tempo do ano anterior, houve uma queda de 12,5% no número de homicídios dolosos, mortes por intervenção policial, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, de 5733 para 5017, segundo reportagem de Igor Mello, do UOL.

Nem todo mundo que tomba com balas da polícia estava colocando em risco da vida de um agente de segurança ou de outras pessoas.

O inquérito da Polícia Civil que investiga a morte da estudante Ágatha Félix, de oito anos, apontou que o disparo partiu de um cabo da PM. O objetivo seria dar um "tiro de advertência" para uma dupla que passava de moto, mas ele acabou acertando a menina que voltava com a mãe para casa em uma lotação no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, no dia 20 de setembro. O policial teria confundido uma esquadria de janela com um rifle na mão do garupa da moto.

"É assim que vamos seguir", disse Witzel.

O governador vem sendo acusado de promover o aumento da letalidade policial como política de segurança pública e de autorizar, através de seus discursos, a licença para matar em comunidades pobres do Rio. Em agosto, por exemplo, em um intervalo de menos de cinco dias, seis jovens, de 16 a 21 anos, foram mortos a tiros durante operações policiais. Não havia evidência de que estavam ligados ao crime. Um helicóptero sobrevoar uma escola com metralhadora apontada para baixo, aterrorizando estudantes, não é eficaz, não é lógico.

Conforme afirmou a este blog o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), "o governador Witzel disputa com o tráfico quem faz mais mal à favela".

Não há ordens diretas para metralhar negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. Primeiro, as forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio, são treinadas para garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com um governador e um presidente que apoiam a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade ajuda a apertar o gatilho antes e só perguntar depois.

Daí, em nome da paz, cristaliza-se o lema de uma sociedade que desistiu da empatia e terceirizou a reflexão: "se morreu pelas mãos da polícia, é porque alguma culpa tinha".

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto