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Leonardo Sakamoto

O pelourinho carioca e a transmissão do ódio via concessão pública de TV

Leonardo Sakamoto

06/02/2014 16h11

Depois que algum braço da Ku Klux Klan composto por cariocas desmiolados prendeu um rapaz negro pelo pescoço em um poste no Rio de Janeiro, imaginei que o caso iria atiçar o debate sobre a dignidade da molecada pobre nas grandes cidades – que, mais de 20 anos depois da Chacina da Candelária, continua uma peça de ficção científica.

Contudo, a discussão ficou concentrada nas declarações de cunho suíno de uma apresentadora de telejornal do SBT, fazendo apologia ao que aconteceu e conclamando ao justiciamento. Quem já assistiu dois dedos de seu programa percebe que a moça montou um personagem em busca de audiência e testa, periodicamente, os limites do tolerável para executá-lo.

A verborragia dela é tão frágil que contribui mais com a reafirmação de bravatas do que na construção e reconstrução de preconceitos. Outros apresentadores semelhantes usam discursos mais elaborados e, não raro, através de formas mais refinadas, fazem com que o telespectador pense que foi ele mesmo quem chegou sozinho a uma ideia. Quando, em verdade, a ideia foi devidamente implantada. O mérito da apresentadora, contudo, é se expressar muito bem. Portanto, ela vai longe.

Em ambos os casos, são discursos reforçados diariamente que entram em nossos ossos, veias e entranhas e ficam por lá alojados, nos moldando como idiotas.

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Esses discursos de ódio transmitidos pela TV têm o agravante de que usam como amplificador em sua luta por audiência a qualquer preço uma concessão pública. Não são provenientes de revista, jornal, internet, enfim, um veículo que usa estrutura e espaço privados, mas – pelo contrário – se fazem valer do espectro público para defenderem o desrespeito aos direitos fundamentais e à Constituição. Programas já saíram do ar por razões semelhantes na Rede TV.

Mas como nem este governo federal nem os que vieram antes dele têm coragem de botar ordem no barraco e questionar concessões que são usadas para veicular mensagens de ódio (que não se resume à emissora supracitada), teremos a manutenção dessa várzea com anuência estatal.

Até porque alguns canais são muito úteis durante as eleições.

A propósito, uma das melhores matérias, curta e grossa, a respeito do caso foi feita pelo site da revista Veja, que muitos de nós, autointitulados à esquerda, adoramos criticar. Foram lá ver a história do rapaz, que é uma desgraça completa. Simples assim.

Há outra coisa que me impressiona nisso tudo. Considerando que tem sido impossível dormir nessa estufa chamada São Paulo, passei a madrugada assistindo trechos de programas de outros jornalistas que, sistematicamente, adotam o discurso espreme-que-sai-sangue. Ela ocupa um espaço em um horário nobre e eles estão em programas que mais se assemelham ao entretenimento do que jornalismo, portanto a cobrança foi maior.

Mas não posso deixar de sentir um certo machismo em algumas críticas direcionadas a ela ("Ah, uma mulher dizendo isso, que absurdo!" ou "Não combina com ela, tão bonita, falar essas baboseiras") que circularam à exaustão nas redes sociais. Isso não deslegitima as críticas à apresentadora, mas para algumas pessoas ela incomoda não apenas pelo conteúdo que profere mas por tomar o lugar de fala sobre violência que, em nosso imaginário, foi construído para ser eminentemente masculino.

Descer o sarrafo em uma mulher é mais fácil. Afinal, há um rosário de jornalistas que, como ela, fazem apologia à violência e ao desrespeito aos direitos humanos que não são criticados da mesma forma.

Enfim, a apresentadora se tornou o que é porque vocaliza uma grande parcela da sociedade mal informada e que foi cultivada na base do medo. Portanto, antes de considerar a sua queda como a solução para todos os males, como também já vi circulando por aí, devemos perguntar como estamos garantindo que seja feito um trabalho de base, via educação, para que a matriz de interpretação do mundo no padrão Casa Grande e Senzala não continue hegemônica.

Pois um negro foi preso a um poste. No Rio de Janeiro. Em 2014.

Não vou dizer que o pessoal extrapola os limites, porque eles não têm limites. Até porque a escravidão formal, se abolida em 1888, continua por aqui.

E a situação deplorável em que hoje se encontra parte da população negra se deve ao fato de que a Lei Áurea não veio acompanhada de políticas para garantir os mesmos direitos aos escravos libertos e seus descendentes. Ao longo dos anos, eles foram cidadãos de segunda classe. A ponto de termos em curso na periferia das grandes cidades um lento genocídio de jovens negros e pobres. Basta verificar o gráfico de mortes violentas por idade e cor de pele.

E entre os mais de 45 mil resgatados da escravidão contemporânea pelo governo federal desde 1995, a presença de negros é maior que a proporção deles na sociedade.

E já que toquei no tema, aproveitando o embalo: como expliquei para um amigo jornalista, a contratação de cubanos pelo programa Mais Médicos não configura trabalho análogo ao de escravo. Testei todas as possibilidades, analisei casos semelhantes e, até agora, não se enquadrou em nenhum dos elementos definidores desse crime.

Se considerarmos que a condição dos médicos cubanos que estão sendo trazidos ao Brasil é de trabalho escravo contemporâneo, como querem fazer crer alguns críticos, também teremos que incluir nessa conta milhões de trabalhadores do agronegócio, da construção civil, dos serviços que recebem salários abaixo do piso ou do mercado. Se quiserem, podemos batalhar para ampliar o conceito e caber isso. Mas depois não reclamem…

Quer envolver o governo brasileiro na brincadeira? Não precisa forçar a mão com os cubanos. Houve libertações de pessoas na produção de coletes para recenseadores do IBGE, em obras do Minha Casa, Minha Vida, do Programa de Aceleração do Crescimento, do Luz para Todos… Casos em que o governo não foi o contratador, mas bem que poderia ser acionado na Justiça por não tomar conta das ações que fomenta.

Ganhar pouco ou mesmo estar em condições precárias de trabalho são coisas diferentes de trabalho escravo. Estampar algo como "trabalho escravo" pode ser útil para dar notoriedade a um argumento, uma vez que é um tema grave e que gera repulsa por parte da sociedade. Mas, por isso mesmo, deve-se tomar muito cuidado ao divulgá-lo, que é o que os jornalistas que cobrem o tema tentam fazer o tempo todo. Saibam que muita coisa fica de fora porque não se sustenta.

Isso não significa que os médicos da ilha que se sintam prejudicados não possam inclusive processar o governo brasileiro diante de eventuais problemas trabalhistas ou tratamento diferenciado de trabalho. Podem e devem.

Agora, é irônico o deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO) defender que a situação de uma das médicas do programa era de trabalho escravo e, ao mesmo tempo, afirmar que o sistema nacional de combate à prática comete excessos. Irônico porque, em 22 de maio de 2012, ele foi um dos 29 deputados federais que votaram contra a PEC do Trabalho Escravo, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades urbanas e rurais em que esse crime for encontrado e é a principal medida legislativa em trâmite para erradicar esse crime. Ela foi aprovada por 360 votos e seguiu para ser discutida no Senado, onde hoje se encontra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.