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Leonardo Sakamoto

Agenda "Fora, Temer" avança entre caminhoneiros em greve

Leonardo Sakamoto

28/05/2018 13h59

Foto: Johnny Morais/Futura Press/Estadão Conteúdo

De tanto martelar que a greve era resultado apenas de uma conspiração de empresários do setor de transportes, parte da sociedade tem dificuldade de entender quando – após um acordo com o governo federal – muitos caminhoneiros não voltam imediatamente ao trabalho.

O movimento nasceu da insatisfação cozida no dia a dia deles, articulada através de grupos de WhatsApp. Empresários de frota se juntaram, praticando um ilegal locaute, mas isso não reduz a greve, nem explica a resistência de sua base. Após a fracassada tentativa de acordo do governo, na última quinta, grevistas disseram que aqueles representantes não falavam pela categoria. E depois da segunda tentativa, neste domingo (27), circularam nas listas desde novas demandas por redução e mais estabilidade do preço do diesel, de desconfiança de que Michel Temer não irá honrar o prometido, outras insatisfações relacionadas à crise até a defesa acalorada de que – agora – a pauta é a saída do próprio governo.

O grito de "Fora, Temer" é legítimo quando brota da reflexão de cada cidadão. Da mesma forma que são legítimas as exigências para redução do custo do frete entre os caminhoneiros – mesmo que reconheçamos as duras consequências de sua greve ao nosso cotidiano. Fazem parte da democracia.

O que não é legítimo é pedir para que as Forças Armadas realizem um golpe militar a fim de apear alguém do poder, como defendem alguns. Mesmo que esse alguém seja Temer. Muitos menos quando grupos com interesses eleitorais circulam mensagens e áudios falsos para criar pânico visando a esse objetivo.

Movimento sem líderes?

Na ausência de lideranças nacionais que sejam reconhecidas como tais e tenham legitimidade para levar o movimento ao seu encerramento rápido, ele vai seguindo em muitos pontos do país. O caminhoneiro – que vive o dia a dia de uma das profissões que mais matam, segundo o Ministério do Trabalho, categoria sistematicamente prejudicada não apenas pelo aumento dos combustíveis, mas por reduções de direitos e extensões de jornadas para privilegiar os clientes – percebeu que tem real poder em um país que foi incompetente para investir em ferrovias e hidrovias. E há os que querem continuar exercendo esse poder na rua.

Vai depender do que discutirem nas próximas horas para saber se seguem ou desmobilizam. Se, por um lado, os que defendem que atingido o objetivo todos voltem ao trabalho são maioria, por outro, há – como em qualquer movimento – uma minoria radical e barulhenta.

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Não é possível buscar respostas no que aconteceu em Junho de 2013 para antecipar o que ocorrerá agora devido às diferenças dos contextos, dos atores e do país – o Brasil é outro desde então. Para começar, havia democracia plena.

Mas movimentos que começam puxados por uma pauta específica e clara, que é defendida pela maioria da população (ambas conectadas com o barateamento do transporte), tem capacidade de agregar a insatisfação popular contra o poder instituído diante de serviços públicos de baixa qualidade ou de uma vida que segue piorando. E se manter na rua por conta disso. Sabemos como esses movimentos começam, mas não necessariamente como terminam.

Foto: Sebastião Moreira/EFE

Junho de 2013 cresceu alimentado pela entrada de outros atores que trouxeram sua insatisfação. Contra o governo, contra o que está aí, contra a capacidade do sistema de política representativa em dar respostas aos seus anseios, contra – às vezes – um sentimento ruim, vazio, sem explicação. Agora, motoboys, donos de vans, motoristas de ônibus e de uber, taxistas – profissões também relacionadas a transporte – deram seu apoio aos caminhoneiros. Isso não significa que entrarão em greve, mas que a insatisfação flui por empatia – contra o preço do combustível, contra o governo. Petroleiros se programam também parar.

E parte da população, que não se vê nem em um polo, nem em outro, mas está cansada de seus representantes, também vai às  ruas dar apoio a grevistas em bloqueios.

Enquanto isso, parte dos representantes do governo e dos analistas não entenderam que movimentos como esse não têm um líder específico e não é controlado por seus sindicatos, mas conta com alta dose de descentralização, reunida pela insatisfação. Esses gestores públicos, ao produzir frases como "agora, deu, voltem ao trabalho" e variações, várias vezes nos últimos oito dias, apenas mostram que gostam de ser ignorados pelos caminhoneiros.

Um naco da esquerda, naquele momento como neste, ficou perdida. Afinal, como os caminhoneiros não se encaixam em seus modelos de trabalhador, como essa mobilização não se encaixa em seu modelo sindical e como muitos deles não compartilham valores progressistas, acabam sendo menosprezados ou acusados de serem manipulados. Para muitos, há dificuldade de apoiar aquilo que não se pode controlar. Outra parte da mesma esquerda, por outro lado, buscou dar apoio aos caminhoneiros, a exemplo do MST, que garantiu a alimentação deles em determinados pontos, ou de frentes que fizeram manifestações nas ruas de grandes cidades.

Ao mesmo tempo, o candidato da extrema direita não apenas tentou surfar a onda, como buscou sequestra-la, dizendo-se a solução. Por mais que seu histórico mostre que fale grosso com quem é pequeno e afine para quem é grande, como o mercado. Mas não é burro e sabe que um país com mais de 60 mil homicídios por ano e, portanto, propenso a abraçar o discurso de imposição da ordem, quer alguém que coloque as coisas no rumo. Por mais que a discussão sobre o preço dos combustíveis ou mesmo o combate ao desemprego não seja resolvida com bravatas e frases "lacradoras".

Motoboys fazem protesto em frente à distribuidora de combustível. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Tendo isso em mente, não é supresa que as mesmas redes de WhatsApp que estão servindo para organizar o movimento também estejam espalhando notícias falsas, como os já conhecidos áudios fajutos que trazem militares de alta patente prometendo depor Temer, fechar o Congresso e mandar o Supremo Tribunal Federal para casa, implantando um governo militar. É deprimente ver gente que se acha bem informada repassando esses áudios como se fossem reais e mais deprimente ainda ver amigos concordando com as palavras falsas. É a proteção às liberdades e às instituições se esfacelando em nome de uma (falsa) sensação de segurança.

Ultrapolarização

Não foi por falta de aviso. Discutiu-se à exaustão o que significaria forçar a barra para efetivar o impeachment usando argumentos questionáveis ao invés de esperar e julgar decentemente as contas de campanha por caixa 2 – o que poderia levar à cassação de Dilma e Temer. Tudo para atender aos interesses do poder econômico e da velha política. A implantação de um programa de governo que não havia sido eleito pelo voto popular pode até ter estabilizado alguns indicadores, mas não reduziu o desemprego e a violência urbana e rural. Ao mesmo tempo, a percepção sobre a corrupção segue alta e os preços de derivados de petróleo estão nas alturas. A falta de legitimidade de Michel Temer e amigos agora cobra seu preço.

Não há resposta simples para movimentos que nascem da insatisfação cozida pela vida cotidiana compartilhada pelas redes sociais. Quem acha, contudo, que isso é uma aberração desses tempos complicados que vivemos, pode ir se acostumando, pois a "aberração" tende a ser frequente. A forma de fazer política está mudando. É um tanto quanto arrogante ouvir de pessoas à direita ou à esquerda que "as coisas saíram do controle". Controle de quem? Das instituições sindicais, patronais e governamentais acostumadas a fazerem acordos de forma a representar os demais?

E em tempos ultrapolarizados, como o que vivemos agora, em que muitas lideranças políticas, econômicas e sociais desistiram do diálogo para tentar impor sua forma de governar ou explorar o país e estão em guerra campal, essa mudança promete ser mais traumática do que já seria.  Porque, neste momento, a sociedade que tem acesso às redes sociais não deseja ouvir ponderações, quer gritar sua insatisfação diante de seus problemas reais. E às vezes grita tão alto que é incapaz de ouvir quando outro chama para conversar para discutirem os rumos da vida coletiva.

Com o tempo, tudo isso pode levar à reinvenção da representação de trabalhadores e patrões e demandará uma revisão da democracia representativa como a conhecemos hoje. Ou pode inviabilizar do país de forma aguda, nos jogando num retrocesso de meio século. Ou ainda pode continuar tudo igual, com o fígado da democracia sendo bicado um pouco por dia.

No curto prazo, o problema a solucionar é como conduzir o Brasil a eleições democráticas, limpas e diretas, planejadas para ocorrer em outubro, sem sobressaltos. Garantindo que tenhamos um país até lá.

Como disse aqui no início da greve, o atual governo não tem legitimidade para negociar, dialogar ou fazer valer as leis. Os caminhoneiros sabem disso, as empresas de transporte sabem disso, os grandes produtores rurais e as indústrias sabem disso, a sociedade brasileira sabe disso. A saída passa, incondicionalmente, por eleições democráticas e diretas, que respeitem a vontade da população. Sem isso, iremos transferir para os próximos quatro ou oito anos o que temos vividos nos últimos oito dias.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.