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Leonardo Sakamoto

É chocante que Doria tenha se chocado só agora com a PM em Paraisópolis

Leonardo Sakamoto

05/12/2019 18h09

Policial desfere golpe em rapaz com muletas, no dia 19 de outubro, na comunidade de Paraisópolis. Imagem: Reprodução

É chocante a facilidade com a qual o governador João Doria mudou de posição com relação aos procedimentos da Polícia Militar contra bailes funk. Na madrugada deste domingo (1), nove jovens foram mortos em uma delas, na favela de Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo, após uma ação policial.

Nem bem os corpos esfriaram e lá estava ele, no dia seguinte, dizendo que "a existência de um fato não inibirá as ações de segurança", reafirmando que "a política de segurança pública não vai mudar", cravando que Paraisópolis e outras comunidades continuariam sendo alvo. Gastou mais tempo defendendo a polícia do que dando palavras de alento às nove famílias que perderam seus filhos e às outras tantas que estão cuidando, neste momento, dos ferimentos dos sobreviventes.

Vale ressaltar que o que ele chama de "um fato" são biografias, a mais jovem delas com 14 anos, que foram interrompidas por ação de servidores públicos do Estado que ele governa.

Talvez amparado pelas palavras de apoio – "mata mesmo", "nove a menos", "se tava lá é porque merecia" – das caixas de comentários das reportagens sobre o caso (onde a razão, não raro, dá lugar ao chorume) ou influenciado por decisões de conselhos comunitários de segurança (que colocam pancadões em primeiro lugar na lista de reclamações), João Doria praticamente botou a mão no fogo pela corporação.

Nos dias que se seguiram, o caso foi tratado como chacina policial dentro e fora do país. As histórias dos jovens foram contadas à exaustão – de como estudavam, trabalhavam, namoravam, ajudavam suas famílias. E de como foram sumariamente executados pelo crime de se divertir em uma metrópole em que jovens pobres não tem esse direito, só os ricos.

Surgiram vídeos provando a violência policial não só no dia da festa, mas ao longo do tempo, nessa e em outras comunidades. Gravações feitas com celulares em que policiais torturam adolescentes e demonstram sentir prazer com isso.

Até o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, figura elogiada diuturnamente pelo governador, veio a público dizer que "aparentemente houve um excesso realmente, um erro operacional grave, que resultou na morte de algumas pessoas".

Qualquer pesquisa de opinião encomendada neste momento pelo Palácio dos Bandeirantes para poder guiar a tomada de decisões de João Doria apontaria para o fato que a população considera o que aconteceu algo inominável.

Com isso, ele mudou de posicionamento. "Como governador do estado de São Paulo, eu não aceito que no Estado onde, tendo sido eleito governador, esse tipo de procedimento exista. E não mais vai existir", afirmou nesta quinta (5).

Disse que vai revisar protocolos e treinamentos. Usou como exemplo o caso de um vídeo, de 19 de outubro, que mostra um policial desferindo golpes indiscriminadamente em jovens, enquanto sorri"Eu mesmo fiquei muito chocado quando vi as imagens que não eram de Paraisópolis agora, num outro momento, de outubro, onde um policial militar agredia jovens que estavam saindo, não sei se de uma sala ou de uma área, desnecessariamente, gratuitamente", disse. 

Mas o primeiro protocolo que deve ser revisado é o dele, que vem apoiando a letalidade policial. Quiçá receber um treinamento para entender que a melhor forma de agir com fluxos, bailes, pancadões é através da criação de espaços públicos para os jovens pobres poderem fazer suas festas.

Já faz tempo que São Paulo e Rio optaram pelo caminho mais fácil do terrorismo de Estado contra determinados grupos sociais ao invés de buscar mudanças estruturais – como garantir qualidade de vida à população e perspectivas para os mais jovens.

Essa política, que não começou com o trio Bolsonaro, Doria e Witzel, certamente enxerga neles o apoio necessário para não se incomodar com as aparências. Perde-se o pudor de matar e cai o tapa-sexo das justificativas, que ainda tentavam encobrir algumas vergonhas. O primeiro depoimento de Doria, na última segunda (2), parecia se basear nessa sensação de "tudo pode". Por sorte, ainda temos imprensa crítica, sociedade com alguma liberdade e jovens que, cada vez mais, não levam desaforo para casa.

Apesar de haver uma maioria honesta de policiais, há setores das corporações que estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram regras. Por isso, é preciso avançar no debate sobre a desmilitarização da polícia e a responsabilização de policiais e administradores públicos por cada ato de violência estatal. Não é possível que atuem como se estivessem em guerra contra seu próprio povo.

Não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de conflitos. Se for para isso, não precisamos de um Estado, muito menos de um governador.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.