Uma excitante denúncia errada vai mais longe do que a retratação sem graça
Leonardo Sakamoto
23/02/2016 14h49
Uma falsa entrevista publicada pelo jornal "Edição do Brasil", que afirmava em sua manchete que eu havia declarado que aposentados são "inúteis à sociedade", levou a uma onda de ataques contra mim nas redes sociais, incluindo ameaças de agressão e de morte. A pedido de meus advogados, o jornal publicou minha resposta diante desse fato surreal, ocupando o mesmo espaço na capa e na página 2 da versão impressa da edição de 20 a 27 e fevereiro.
O dano causado, contudo, nunca será coberto pela publicação, o que deveria servir de lembrete a todos que postam conteúdo duvidoso na rede sem checar. Afinal de contas, uma excitante denúncia errada vai mais longe do que a correção sem graça.
Por exemplo, mais de 25 mil compartilharam a entrevista falsa diretamente do site do jornal – que, após críticas e solicitações de esclarecimento, foi trocada por uma nota de esclarecimento. Isso sem contar outras dezenas de milhares de compartilhamentos e retuítes via redes sociais. E, até o momento de publicação deste post, apenas nove haviam compartilhado a versão digital de minha resposta no mesmo site. O número certamente vai crescer, mas não deve chegar nem perto.
Além disso, essas mentiras têm cauda longa, duram meses e anos, arrastando-se pela internet e sobrevivendo de incautos e ignorantes que, no limite, resolvem fazer justiça com as próprias mãos ao te encontrar na rua.
O jornal reafirma em nota junto com a resposta que também é vítima e está procurando os meios legais competentes, uma vez que alguém teria se feito passar por minha assessoria e respondido as questões em meu nome.
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Segue o texto de resposta publicado no jornal:
Sakamoto não disse que aposentados são "inúteis à sociedade"
Este jornal estampou em sua manchete principal, da edição de 30 de janeiro a 6 de fevereiro, uma foto do jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto e uma declaração atribuída a ele de que aposentados são "inúteis à sociedade". Contudo, Sakamoto nunca disse tal loucura, não deu declaração alguma a este jornal e não criticou aposentados. Pelo contrário, sua página na internet, uma das mais visitadas sobre o tema de direitos humanos, defende políticas públicas para garantir qualidade de vida à população idosa.
A manchete convidava o leitor a ler uma entrevista com Sakamoto na editoria de "Opinião". Porém, a entrevista é falsa. Ele nunca conversou com qualquer profissional deste jornal, tampouco afirmou qualquer dos preconceitos contra idosos e aposentados que constam na entrevista e não autorizou ninguém a responder a entrevista em seu nome.
Os impactos causados pela publicação da manchete mentirosa baseada na entrevista falsa não puderam ser mensurados totalmente e causarão danos durante um longo tempo na vida do jornalista. Ele registrou o que acontece quando uma mentira difundida na rede começa a repercutir, que vocês podem ler a seguir.
1) Pessoas que não conhecem as ideias do Sakamoto começam a compartilhar o texto, indignadas.
2) Mensagens espumando de raiva chegam até ele. Muitas de aposentados. As mais leves, desejam dor e sofrimento.
Como a de Durval Alves Correia Alves, do Rio de Janeiro (RJ): "Seu verme. Deveria ter vergonha do seu pai e da sua mãe que os colocou no mundo. Deveria ter a sensibilidade de saber que o idoso contribui muito mais do que você como jornalista. Acredito que você deverá morrer antes dos seus 40 anos, senão de alguma doença incurável ou de tiro. Toma vergonha na puta da sua cara e vê se faz alguma coisa de bom para aqueles que precisam de pessoas de dignidade. Seja homem e não um marginal. Cuidado com as merdas que fala, você é um ser mortal… Não se esqueças disso seu filho da puta, pela saco, inútil é você. Me processa".
3) As conhecidas redes de ódio e intolerância, mesmo sabendo que aquilo não condiz com o pensamento de Sakamoto, se apropriam do conteúdo e começam a dispará-lo insistentemente. Surge o primeiro "esse desgraçado é vendido para o governo federal", afirmando que pagaram propina para que ele falasse mal de aposentados. Essas postagens evitam dizer que o jornalista é crítico ao governo Dilma Rousseff e às mudanças na Previdência e na legislação trabalhista que ela estuda. Surgem os memes, que alimentam as hordas do Fla-Flu político nacional que, de forma leviana, reduzem todos que são de esquerda a um partido político.
4) Alguém relaciona a entrevista falsa ao nazismo e diz que o nazismo e o socialismo são a mesma coisa. E que adotar uma postura à esquerda significa querer acabar com os mais velhos. "Nazista é gente boa perto desse animal", é um exemplo desses elogios enviados ao Sakamoto. Alguém sugere a hashtag #Heil_Sakamoto.
5) Chegam ameaças. Como a de Jullio Cavalcante Fortes, de Rio Branco (AC): "Este filho da puta, desgraçado, deve ser caçado e morto a faca. Vou distribuir este escárnio para todo o Brasil. E vamos aguardar no que vai dar. Gostaria muito de enfiar 5 balas 1.40 no meio da testa deste filho da puta para ele nunca mais falar mal dos idosos. Desgraçado (sic)".
6) Leonardo Sakamoto publica uma explicação no Facebook, dizendo que nunca disse aquilo e aponta para um post de 30 de dezembro de 2015 que ele escreveu ("Três formas para convencer os pobres que aumentar o salário mínimo é ruim") defendendo o aumento do salário mínimo e que foi desvirtuado, distorcido e transformado na falsa entrevista. Há pessoas que leem a explicação, mas não acreditam ("se está se justificando é porque fez") e outras simplesmente ignoram o texto e continuam me xingando.
7) Leitores frequentes do blog, que concordam com ele ou não, tentam convencer os amigos na rede de que aquilo não faz sentido e a acusação é falsa. Mostram o texto original de onde foi inspirada a falsa entrevista, explicam a distorção de tudo. Parte dos amigos dos leitores, em fúria, ignoram as explicações, dizem que nada disso importa. O que importa é que ele é de esquerda. E se é de "esquerda" pode até não ter tido culpa nisso, mas alguma culpa ele tem. E, seguindo a lógica do linchamento (se a turba está contra ele é porque é o culpado), sentam o pau.
8) O primeiro jornalista entra em contato para repercutir a matéria. O texto atinge, em pouco tempo, dezenas de milhares de compartilhamentos em várias plataformas e fontes que republicam o conteúdo falso.
9) O próprio jornal, em nota que substituiu a entrevista falsa na internet, reconhece que ela não foi concedida por Sakamoto. Alega que ela foi respondida por uma pessoa que se fez passar por uma assessora do jornalista para prejudicar a ele e ao jornal. Vale lembrar que o jornal nunca ligou para Sakamoto para checar qualquer informação antes de colocá-la na capa.
10) Mas não importa mais, não depende mais do jornal. As redes de ódio ignoram e continuam divulgando o conteúdo original. Como um desmentido não é difundido com a mesma intensidade que uma acusação, e como as pessoas só leem título e foto na internet antes de comentar, a porrada continua. Na verdade, o conteúdo não mais importa, nem o desmentido, nem a informação. Sakamoto passa a ser obrigado a provar de que não falou aquilo e não o contrário. É raiva, apenas raiva que flui.
De acordo com Sakamoto, o próximo passo é bem conhecido por ele: "ser xingado no supermercado ou ser vítima de agressões e cusparadas na rua, como já aconteceu comigo quando circularam outras difamações no passado". Esses casos têm cauda longa, duram meses e anos, arrastando-se pela internet e sobrevivendo de incautos e ignorantes. É conteúdo que ficará circulando para ser capturado por grupos que promovem o ódio, saindo da rede e sendo transportados por pessoas sem discernimento que, no limite, fazem justiça com as próprias mãos.
Portanto, fica o pedido: jornalistas ou leitores, chequem a informação antes de divulgá-la. Com isso, vocês podem evitar uma tentativa de assassinato da reputação de outra pessoa.
Fui representado nesse caso por Eloisa Machado, André Ferreira e o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (Cadhu), grupo de advogados que têm realizado um trabalho fundamental na defesa da dignidade no Brasil.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.