Intervenção no Rio: Só um país que se perdeu declara guerra ao próprio povo
Leonardo Sakamoto
17/02/2018 02h32
Um governo com alta taxa de rejeição cria uma guerra contra um inimigo a fim de reunir apoio popular e distrair a sociedade de outros problemas internos.
Não dá para dizer que Michel Temer foi criativo com a intervenção federal sobre a área de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro em meio ao iminente naufrágio da Reforma da Previdência, uma vez que essa tática tem sido sistematicamente usada por grupos no poder em várias partes do mundo. Para se ter uma ideia do tamanho do clichê, filmes que reproduzem esse roteiro nem são mais indicados ao Oscar, tamanha falta de originalidade.
O governo dos Estados Unidos, por exemplo, seja ele republicano ou democrata, adora despejar bombas, invadir territórios e demonizar outros povos quando precisa dar um gás na popularidade interna visando uma (re)eleição ou reforçar uma mentira sobre o porquê de suas tropas estarem matando e morrendo a milhares de quilômetros de distância de casa.
A situação da segurança pública é muito grave no Brasil. Há um genocídio de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades e trabalhadores rurais, indígenas e populações tradicionais sendo chacinados no interior do país. Entre as razões da violência urbana, encontra-se uma política fracassada de guerra às drogas que transforma comunidades em territórios a serem disputados para comércio e armazenamento de entorpecentes. Morrem moradores, policiais, traficantes, muitos deles pobres e negros.
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Se os poderes político e econômico se preocupassem com isso, teriam abandonado a política de criminalização das drogas há tempos e criado alternativas para que os mais jovens tivessem um futuro. Mas não é o caso. Preferiram encher os bolsos de dinheiro, saqueando o Rio e estruturando a maior organização criminosa atuante no Estado. Ou alguém acha que um reles dono de morro faz frente a um presidente de Assembleia Legislativa ou um governador?
Quando países inflam o inimigo a fim de gerar identidade reativa e unir o povo ao seu redor, quase sempre ele é o "estrangeiro", o "de fora", o "diferente", não é o seu cidadão. O demônio, que merece morrer, é sempre o outro.
Mas, no Brasil, a intervenção das Forças Armadas determinada pelo governo Temer, pode levar mais guerra ao próprio povo. Quem morrerá nas batalhas não serão os "estrangeiros", mas os brasileiros de comunidades pobres. E o histórico das ações das Forças Armadas em outros momentos de ocupação mostra que eles devem se preocupar.
Como já disse no meu post anterior sobre a intervenção, Forças Armadas são treinadas para matar. Seus membros não têm liberdade para tomar decisões que levem em conta a situação do local em que estão em um determinado momento. Mais do que seguir ordens de um comando militar que vê a necessidade de vencer uma batalha, o objetivo de um policial deveria ser proteger a vida e a dignidade humanas acima de qualquer outra coisa. Pois a polícia não está em guerra com seu próprio povo. Ou, pelo menos, não deveria estar. E considerando que a legislação foi alterada no ano passado e a Justiça Militar e não a Justiça Comum passou a ser a responsável por julgar crimes cometidos por membros das Forças Armadas no exercício de suas atividades, há um potencial não mensurado de impunidade nessa história.
Um colega jornalista me ponderou, contudo, que se isso acontecer, as Forças Armadas estarão sim matando os inimigos, os estrangeiros, os de fora, na visão de uma parte da sociedade. Porque esses substituíveis, pobres moradores das periferias – onde as batalhas são sempre travadas – nunca foram considerados como cidadãos tanto por aqueles que lucram com o medo quanto por aqueles que temem mais o discurso da violência do que a vivenciam em si.
E talvez resida aí a razão de todo esse circo estar acontecendo.
A intervenção federal é a prova de que falhamos. Profundamente, amargamente. Não apenas ao manter governantes incompetentes, corruptos e insensíveis, que perseguem soluções simplistas e fogem de ações estruturais, mas também ao permitir que a cidadania não seja universalizada (desde 13 de maio de 1888) e que a vida desses não-cidadãos valesse menos do que um instrumento descartável de trabalho.
O governo sabe muito bem a estrada que pegou. Mas não tem ideia para onde ela vai levar.
Pois só um país que se perdeu tem coragem (ou a estupidez) de declarar guerra ao próprio povo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.