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Uma bomba de ódio foi armada em torno do julgamento de Lula

Leonardo Sakamoto

03/04/2018 19h00

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Independentemente do resultado do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, pelo Supremo Tribunal Federal, nesta quarta (4), ainda teremos um país na manhã seguinte. Seria importante, portanto, que não agíssemos como se o mundo acabasse após a decisão.

Para quem sofre de problemas crônicos de interpretação de texto, não estou sugerindo panos quentes a nenhum dos lados. O debate deve ser feito com a gravidade e a seriedade que o tema demanda. Mas as poucas pontes de diálogo que restaram após o impeachment de Dilma Rousseff correm o risco de ruir nesse processo, abrindo caminho para o inominável. Diálogo não significa conciliação ou "acordão", mas tornar a convivência possível.

As afirmações de generais de pijamas, de que podem promover um golpe militar caso os resultados das eleições de outubro não sejam do seu agrado, não devem ser encaradas como ameaças reais. Afinal, parte considerável das Forças Armadas opera, hoje, dentro de parâmetros democráticos. E se, por um lado, afirma repudiar a impunidade, por outro encara essas declarações estapafúrdias da mesma forma como vemos um tio descompensado no WhatsApp da família. Mas o espaço que se confere a elas e a consequente reverberação funcionam como um termômetro do nível de respeito às instituições. Que anda baixo, muito baixo.

O próprio Supremo, por sua ação e inação, é um dos responsáveis pela situação de crise institucional que chegamos, ao dar pesos diferentes a crimes semelhantes dependendo do réu, ao se calar quando precisávamos que reafirmasse a Constituição Federal e por passar por cima da mesma Constituição quando bem quis. Como escrevi aqui ontem, por sua covardia e fraqueza nos momentos em que foi chamado a garantir isonomia no tratamento a diferentes grupos políticos à luz da lei, tornou-se cúmplice da zorra que bate à sua porta.

Poderia ter discutido, há muito tempo, a questão da possibilidade de execução provisória da pena após condenação em segunda instância para todos os casos. Mas esperou o processo de Lula cair à sua mesa como uma bigorna, criando tensão para a corte e milhares de outros brasileiros que poderiam ser beneficiados se voltasse o entendimento de prisão após trânsito em julgado.

Enquanto isso, religiosos e parte da mídia inflamam a população, desumanizando o adversário e transformando o jogo democrático em uma luta do bem contra o mal. E políticos inflamam seus eleitores contra jornalistas, progressistas e conservadores, por eles estarem divulgando fatos reais e não as opiniões que convém a esses políticos. Como consequência, pessoas passam a desejar e a festejar a morte daqueles que foram desumanizados e jornalistas sérios passam a apanhar nas ruas porque cismam em não concordar que emoções superam provas.

Neste momento, pessoas decretam a inutilidade não só do parlamento, mas também da própria atividade política – que, teoricamente, deveria ser uma das mais nobres práticas humanas. Outros solicitam que se encontre um "salvador da pátria" que nos tire das trevas, sem o empecilho de pesos e contrapesos.

Mas isto é Brasil. E ao clamarem por messias, receberão o anticristo.

Já disse isso aqui, mas resgato por ser pertinente. A corrupção minou bastante a credibilidade de instituições. Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanecem longe dos olhos do grande público, foram relevantes. Mas a incapacidade da classe política de garantir a proteção do emprego da população mais vulnerável e um mínimo de segurança pública para tocar o dia a dia jogaram água no moinho da antipolítica.

A maior parte do povão, a maioria amorfa em nome do qual tudo isso é feito, mas que raramente se beneficia do grosso do Estado, não foi às ruas nem pró, nem contra Dilma Rousseff. Da mesma forma, não irá nem a favor, nem contra prisão de Lula. Continua onde sempre esteve: trabalhando pelo bem-estar de uma minoria e assistindo a tudo bestializado pela TV.

Nesse contexto, ter opinião virou crime, defender um ponto de vista, delito, abraçar uma ideologia, passível de morte. Ou, em outras palavras, "fazer política é escroto". Ou, pior, caminho para o enriquecimento ilícito. Ou seja, espalha-se a percepção de que quem se engaja na política, partidária ou não (porque muitos fazem questão de resumir toda política à partidária), tem interesses financeiros. Porque muita gente não consegue entender que a vontade de participar dos desígnios da pólis não seja apenas por ganho pessoal.

Para piorar, alguns grupos que viviam à sombra de partidos, de um lado e de outro do espectro ideológico, mas principalmente entre os conservadores, se fortaleceram no processo de impeachment. Os partidos e parte da imprensa acharam que estavam reunindo as forças ao seu lado para a guerra. Agora, começaram a perceber que podem sair desse caos como coadjuvantes. Transformados em milícias digitais que operam perfis falsos e páginas voltadas à desinformação e manipulação, esse pessoal não acredita no diálogo, apenas na porrada e na humilhação.

Gritar tudo isso para a nossa bolha nas redes sociais também não resolve. Ou você respira fundo e conversa com quem pensa de outra forma, promovendo a empatia onde ela não existe e concedendo – nessa conversa – o mesmo tratamento que confere aos seus amigos, ou continuaremos vendo exércitos se armarem de cada lado para uma guerra em que apenas as baratas sobreviverão.

Meu medo é que o ódio mútuo esteja consolidado de tal forma que as pessoas já não sejam incapazes de perceber que a discussão não é entre esquerda e direita, mas entre civilização e barbárie.

E, após uma guerra nuclear, restem apenas as baratas.

Baratas que podem se tornar a principal referência política. Baratas que podem ser eleitas para o comando da República. Porque, se por um lado, são asquerosas, por outro, são simples e resistentes.

Estavam lá antes de nós e estarão muito depois de todos irmos embora.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto