Greve dos caminhoneiros: O Brasil em pane seca é o retrato do governo Temer
Leonardo Sakamoto
27/05/2018 12h39
Cada vez que o governo federal vem a público para dizer que a greve é uma orquestração de donos de transportadora, como fez Carlos Marun, ministro-chefe da Secretaria de Governo, mais os caminhoneiros autônomos ficam com raiva de Michel Temer. E o governo parece que gosta de dizer isso, num ato contínuo de sadomasoquismo político.
A incapacidade desse governo em entender a complexidade da situação ajudou a criar algo que possa já estar além do seu controle. Como venho dizendo neste blog, há uma insatisfação legítima de um grupo profissional que viu não apenas sua renda ser corroída pelos constantes aumentos no preços dos combustíveis, mas também a vida transformada em caos devido à imprevisibilidade de quando ocorrem os repasses. Claro que empresas de frete parasitam o movimento em nome de seus interesses e devem ser punidas. Mas esse não é, nem de perto, o cerne da questão. E a partir do momento em que uma grande parte da categoria não se vê representada pelo acordo firmado com o Palácio do Planalto e segue parada, a ficha do governo deveria ter caído. Nessa hora, contudo, o presidente chama a "mãe" – o Exército – para adotar a força no lugar do diálogo, deturpando a função constitucional dessa instituição.
Temer e seu grupo político do MDB chegaram ao poder com a benção de grandes empresas e do mercado, de um lado, e da velha política, de outro. Ao primeiro grupo, prometeu tirar o país da crise sem jogar a conta da conta dos mais ricos e aplicar reformas liberalizantes que reduziriam o tamanho do crescente Estado de bem-estar social em prol do PIB. Ao segundo, prometeu sobrevivência diante da Lava Jato e um governo-amigo que mudaria proteções sociais e ambientais para facilitar a vida de seus representados, fazendo com que voltássemos 20 anos em dois.
A reação do governo Temer diante da greve dos caminhoneiros deve ser entendida no contexto da política que ele adotou em seu governo: pró-mercado, fiscalista e de restrição da proteção social. Analistas não entendem por que a população não acredita que o país melhorou, uma vez que os indicadores econômicos provariam isso. O povo, contudo, não "come" indicadores econômicos e o desemprego segue forte. O governo agravou a instabilidade social e, dois anos após seu início, o Brasil parou pela falta de combustível na bomba. A verdade é que a agenda do mercado, abraçada por Temer, é tosca e sem sutileza para lidar com a política. Talvez por isso parte dele morra de amores por um candidato à Presidência tosco e sem sutileza.
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Se as coisas chegarem a níveis alarmantes, Temer pode ser o boi de piranha que a classe política precisa para conseguir não ser jogada fora nas eleições de outubro – isso se conseguirmos ter um outubro, claro. Pois muitos trabalhadores encontraram na greve dos caminhoneiros uma oportunidade de expressar sua insatisfação contra as altas no preço dos combustíveis, contra os impostos, contra o desemprego, contra tudo o que está aí. E, principalmente, contra Temer – que se tornou a personificação da insatisfação nacional.
E a Petrobras?
Para fugir do equivocado controle de preços adotado pelo governo Dilma Rousseff, Michel Temer entregou as decisões ao mercado, indo ao outro extremo. Contudo, a função da Petrobras, empresa de capital misto, não deveria ser apenas gerar caixa para a União através de seus dividendos. A maior parte da população espera que ela atue como um instrumento de desenvolvimento social, agindo – na medida do possível – para tornar a vida de seus acionistas indiretos (o povo) mais palatável.
Isso não significa impossibilitar uma gestão profissional na mais importante empresa brasileira. Mas o governo não pode se furtar a criar mecanismos para amortizar ou absorver variações ou mesmo procurar substituir importações de derivados de petróleo que impactam nos preços. O fato é que nenhum político que defender a livre flutuação de preços dos combustíveis passa para o segundo turno nas eleições presidenciais. Uns chamam isso de populismo, outros de democracia.
Se Temer contrariar o mercado e mudar a política da Petrobras, levando à demissão de seu presidente Pedro Parente, perde parte do apoio de parte do poder econômico e vai ser cristianizado por alguns analistas na TV, nas rádios, nos jornais e na internet.
Se apoiar o corte de certos impostos sem encontrar formas de contornar a arrecadação, pode resolver o problema no curto prazo, mas aumenta a quantidade de dinamite na bomba-relógio em que o país está esplendidamente sentado. A população está cansada de pagar imposto sem ver os resultados, mas ficará possessa se os serviços públicos deixarem de funcionar.
Bola de neve
Se esperar mais, verá a escassez tomar conta do cotidiano dos brasileiros e protestos se avolumarem – com a entrada de taxistas, motoboys e mototáxis, donos de vans e petroleiros. A falta de produtos já é sentida, mas ainda não é o cenário Mad Max percebido por muita gente. Pode vir a ser, contudo. E diante de uma completa inviabilidade política, uma renúncia ou um impeachment mediante a apresentação de uma terceira denúncia por parte da Procuradoria Geral da República é sempre possível. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, sabe disso e se distancia de Temer.
Para se manter no poder diante das outras duas denúncias criminais contra ele, Temer perdoou dívidas de empresários, cortou impostos, entregou cargos e emendas a parlamentares e até tentou dificultar a libertação de trabalhadores escravizados. Como já queimou muitos dos cartuchos (com nosso dinheiro e nossa dignidade), tem poucas opções nas mãos se vier uma nova porrada. Isso seria um alento à população, mas não resolveria o problema. Ainda seria necessária uma resposta quanto ao preço do combustível. Ou seja, a esta altura, a solução não virá com a cabeça de Temer, mas com a devolução da vida da população de volta a ela.
Se chegarmos a esse ponto, contudo, é bem provável que uma parte significativa da população, cansada, desalentada, enganada e desiludida, queira um governo que imponha "ordem". Na política, na economia, no dia a dia. Daí, o caminho para apresentação de propostas autoritárias estará asfaltado. O que pode fazer dessas eleições um balada estranha com uma ressaca que pode durar quatro anos.
Não importa o que aconteça daqui em diante, fica uma lição: chamar algo por outro nome não muda a sua natureza. Shakespeare já dizia isso há 500 anos, mas parece que nossa elite política e econômica passou todo esse tempo lendo outra coisa.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.