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Linchamento de repórter se aproveita da ignorância sobre o jornalismo

Leonardo Sakamoto

11/03/2019 20h20

Foto: Adriano Machado/Reuters

A última polêmica envolvendo Jair Bolsonaro – que ajudou a promover o linchamento virtual da repórter Constança Rezende, do jornal O Estado de S.Paulo, ao bombar informação falsa a seus seguidores – levantou uma questão – além, claro, da incredulidade diante de um presidente da República agindo como hater quando deveria estar trabalhando.

Muitos que se uniram ao ataque justificaram que o tuíte de Bolsonaro estava embasado em um post do site Terça Livre que, por sua vez, afirmava ter se baseado em veículos nos Estados Unidos e na França que usaram uma "entrevista" feita com a jornalista. Constança foi acusada de ter dito que "a intenção é arruinar Flávio Bolsonaro e o governo", com relação à investigação sobre as "movimentações atípicas" de Fabrício Queiroz, suspeito de agir como laranja do então deputado estadual e hoje senador, primogênito do presidente.

O áudio da entrevista não traz a frase citada, usada no título do site bolsonarista que divulgou o conteúdo por aqui. Ao mesmo tempo, os textos publicados nesses dois países não são reportagens, mas opiniões. E isso é fundamental explicar.

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Um artigo ou uma coluna traz o posicionamento ou análise de um autor sobre algo. Se desejarmos saber o ponto de vista institucional de um jornal sobre um tema, precisamos ler o editorial. Esses formatos opinativos diferem daqueles de conteúdos narrativos, cuja função é trazer fatos, como notícias e reportagens.

Parte dessa confusão vem de pessoas que, por ingenuidade e falta de informação, passam por cima das diferenças e consomem gato por lebre. Mas os ingênuos são guiados por quem, de má fé, sabe que um artigo não é uma reportagem e se vale do desconhecimento desse público para difundir que um veículo norte-americano e um francês teriam investigado a história através de seus repórteres.

Bolsonaristas, nas redes sociais, chamaram de "reportagem" um artigo de opinião de um veículo fundado pelo Reverendo Moon, da Igreja da Unificação, o The Washington Times. Vale não confundir com o The Washington Post, esse sim referência global.

Já a "reportagem" do veículo francês, o Mediapart, com 2,41 milhões de seguidores no Twitter, é um artigo de um blog que não faz parte da redação do jornal. Essa explicação veio do próprio veículo: "Mediapart se solidariza com a jornalista @constancarezend, vítima de ameaças. As informações publicadas no "club de Mediapart", que serviram de base para o tweet de @jairbolsonaro, são falsas". 

Isso é um exemplo que a guerra na internet não conta apenas com a distorção dos fatos. Às vezes, é a manipulação sobre a credibilidade do veículo, o formado da mensagem e o contexto que reforça a desinformação.

Há um problema anterior às "notícias falsas". Parte das pessoas acha que texto é tudo igual. Certamente você não acredita que massa é tudo igual, não chama lasanha de espaguete e canelone de nhoque. Então por que acha que os diferentes textos jornalísticos têm o mesmo formato e gosto? Bolsonaro se beneficiou do fato que a população acreditava estar consumindo fatos, quando comia opinião baseada em premissas falsas.

Pode parecer insignificante. Mas isso pavimenta a estrada em direção a um futuro com cara daqueles episódios sombrios de Black Mirror que a gente não gosta de ver sozinho.

O jornalismo se organiza em dois grandes formatos: o da narração (usado para relatar fatos e falas) e o da argumentação (para lidar com as ideias). A diferença entre ambos não é que um tem informação e o outro, opinião. Todo texto noticioso tem sua carga de opinião. Afinal, a escolha das fontes, o recorte temporal ou espacial da apuração, entre outros, são resultado do ponto de vista do repórter, de seus chefes e do próprio veículo. Da mesma forma, textos opinativos também trazem conteúdo factual, com informações sobre o tema do qual tratam.

A questão que diferencia ambos é a estrutura utilizada. E temos várias, como a entrevista, a notícia, a reportagem, o artigo de opinião, o editorial, cada qual misturando uma dose diferente de informação e opinião. Se tivéssemos uma educação para a mídia como parâmetro curricular obrigatório nos ensinos fundamental, médio e até superior, reduziríamos esse tipo de confusão voluntária ou involuntária. Isso aliás é um indicador que um governo não teme que os jovens se empoderem e saiba, identificar os cabrestos políticos digitais.

Por que todo esse trololó é importante? O debate público poderia ser mais bem resolvido se as pessoas, ao lerem um texto, prestassem atenção no tipo de mensagem. Opiniões e análises são importantes, mas o coração do jornalismo e, portanto, um dos pilares da democracia é a reportagem, com provas e checagens, contraditórios e enumeração de versões.

Daí, ao se depararem com um editorial, um artigo de opinião ou mesmo uma análise não vão aceitar um ponto de vista como pacote de fatos. E, ao mesmo tempo, quando receberem opiniões e análises que forneçam interpretações diferentes das suas, não irão gritar que se trata de fake news. Pois, na verdade, saberão que não se trata nem de news. 

Essa situação também envolve outros fatores, como a questão do viés de confirmação (tendemos a chamar de verdade tudo com o qual concordamos e de mentira, tudo o que discordamos), as bolhas produzidas pelos algoritmos nas redes sociais (que nos isolam em grupos iguais a nós e dificultam o convívio com a diferença e, dessa forma, o respeito a ela), entre outros.

Este post, enfim, não é sobre os interesses obscenos de quem é capaz de compartilhar informação falsa, atiçando uma horda de haters contra jornalistas e a própria imprensa, para manter uma guerra constante e garantir que apoio nunca lhe falte. Mas sim sobre texto. Afinal, se você é capaz de interpretar o que lê, vê e ouve, não sendo guiado pelo seu ódio ou o de terceiros, mas pela razão, será um indivíduo, um cidadão. E não gado.

Porque, como sempre digo: falta amor no mundo, mas falta também muita interpretação de texto.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto