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Leonardo Sakamoto

Insanidade que pede golpe militar tenta parasitar greve dos caminhoneiros

Leonardo Sakamoto

29/05/2018 10h03

Trump, I'm here! – Grupo pede intervenção militar na avenida Paulista nesta segunda (28). Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

A pauta antidemocrática tenta surfar a onda do movimento grevista através de grupos de caminhoneiros simpáticos à ideia de uma "intervenção militar" (vulgo, golpe) e indivíduos que não têm relação com a categoria, mas foram convocados por coletivos de extrema direita. Tanto em bloqueios e acostamentos nas estradas quanto nas vias do WhatsApp.

Mas está longe de ser opinião corrente entre os caminhoneiros em greve a pauta maluca, tosca e desvairada de golpe. O consenso é das condições precárias de trabalho a que são submetidos e da falta de legitimidade do governo Temer para negociar, tanto que muitos motoristas autônomos ainda não acreditam na efetividade do último acordo firmado.

Isso gera uma distorção na percepção de parte da sociedade, que acaba acreditando que todo caminhoneiro ainda parado quer tropas marchando sobre as grandes cidades brasileiras. Além de acompanhar trocas de mensagens de caminhoneiros em greve, tenho conversado com alguns por telefone e visitado bloqueios e a realidade não é essa. Relatos de colegas no Rio Grande do Sul e na Bahia reforçam o que tenho visto em São Paulo. São um grupo pequeno, radical e barulhento, mas que conseguem espaço nos veículos de comunicação e provocam apreensão nas redes sociais.

Os apoiadores do golpe militar chegam até a esvaziar pneus para evitar que caminhoneiros satisfeitos com o acordo voltem ao trabalho e a atacar donos de postos de gasolina para que, mesmo com combustível, não abram as portas.

Como disse aqui ontem, movimentos sem lideranças nacionais definidas, que começam em uma catarse coletiva, não se desfazem do dia para a noite. Há um forte processo inercial, alimentado pela falta de confiança no governo e pela percepção do poder do próprio movimento – o que leva ao seu prolongamento para demonstrar outras insatisfações – ou à sua transformação em algo diferente. Nisso se enquadra a tentativa de sequestro do movimento por quem quer ver militares tomando o poder.

O mais interessante é que uma "intervenção" diante da greve é rechaçada até por nomes conhecidos relacionados ao Exército. O general da reserva Antônio Mourão – aquele que disse, ao se aposentar, ser necessário que o Poder Judiciário "expurgue da vida pública" Michel Temer – afirmou que "tem gente que quer as Forças Armadas incendiando tudo. E a coisa não pode ser assim, não pode ser desse jeito".

O próprio Jair Bolsonaro, acusado de se beneficiar com a paralisação e de agir para mantê-la com fins políticos, afirmou ser contra a chegada dos militares ao poder que não fosse pela via voto e pede o fim da greve. "Se eu puder dar um recado para o movimento, a corda esticou, todos vão perder. Até o que o caminhoneiro vai ganhar com o diesel, vai perder com o empurrão na inflação."

O mais triste é saber que os malucos de plantão que têm saudade da ditadura militar (e seus paus-de-arara e cadeiras de choque, suas prisões arbitrárias e os habeas corpus transformados em lixo, suas megaobras superfaturadas e as tentativas de genocídio indígena, seus protestos encerrados com prisões e greves terminadas na bala, suas aposentadorias especiais para filhas de militares e seus loteamentos de cargos com amigos, seu desmatamento e seu trabalho escravo nas alturas, seu alto endividamento externo) foram alimentados pelo próprio Michel Temer, que tirou as Forças Armadas da caserna para o centro do poder a fim de tentar compensar sua falta de legitimidade.

Pois antes mesmo de entregar o comando da intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro a um general, ele já havia colocado militares em outros postos-chave da administração, inclusive para comandar a inteligência, e sancionou lei que transfere o julgamento de crimes cometidos por militares durante operações urbanas para a Justiça Militar – aumentando o risco de impunidade.

Qual a mensagem que passa um governo que não consegue dialogar com manifestantes e grevistas e chama o Exército quando percebe que perdeu o pouco controle que tinha? Será que não se dá conta que, diante da insatisfação popular, soldados, cabos e sargentos – que também são trabalhadores e sofrem com a situação econômica – podem se negar a cumprir ordens?

Uma coisa é ter opinião. Outra é gente que acha que a Constituição é papel higiênico e as instituições democráticas (que levamos décadas para tentar construir) são um grande vaso sanitário. E defende que seu ponto de vista seja aplicado à força, através do fuzil e do canhão, em prejuízo à liberdade e à dignidade do restante da população. Ainda bem que o comando das Forças Armadas sabe que tem funções constitucionais a cumprir, apesar da gente maluca que defenda o contrário.

Enquanto isso, as instituições vão se fragmentando. Se não resolver a crise rapidamente e impedir que ela alimente outras semelhantes, que significam novas ondas para os antidemocratas surfarem, Michel Temer corre o risco de ter que sacrificar a si mesmo diante de um país inviabilizado. Por exemplo, convencido por um acordo para não ser preso por corrupção logo após deixar o poder. Por que a História mostra que não existe vácuo de poder.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.